Cotas universitárias no Brasil: positivo ou negativo?

Por Viviane Gonçalves Campos

Ent_RBEDU_Marcus_Lima_fotoMarcus Eugênio Oliveira Lima é professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Sergipe. Desenvolve pesquisas no âmbito da psicologia social, com ênfase em processos grupais, normas sociais, racismo e infra-humanização. Nos últimos anos, tem se dedicado ao estudo dos processos de inviabilização e despersonalização das minorias sociais.

Seu primeiro livro foi lançado em 2004, sob o título: “Estereótipos, preconceitos e discriminação: perspectivas teóricas e metodológicas”. Em 2005, publicou com outros autores “A psicologia política na perspectiva psicossociológica: o estudo das atividades políticas”. Em 2011, “Cultura e Produção de Diferenças: estereótipos e preconceito no Brasil, Espanha e Portugal”, e, também, “Psicologia Social: temas e teorias” que teve sua segunda edição publicada em 2013; além de vários capítulos de livros e artigos focados na análise de temas relacionados aos processos grupais e suas configurações no mundo contemporâneo.

No primeiro número de 2014 da Revista Brasileira de Educação, com Paulo Neves e Paula Bacellar, apresenta o artigo “A implantação de cotas na universidade: paternalismo e ameaça à posição dos grupos dominantes”. Este tema é atual e merece ser debatido no cenário educacional brasileiro com o intuito de compreender os impactos que as políticas públicas causam no desenvolvimento da sociedade.

A pesquisa apresentada é composta de dois estudos, nos quais é possível entender como se manifestam e desenvolvem as atitudes perante as cotas dentro da universidade. O primeiro estudo foi realizado em 2005, antes da implantação desse sistema e o segundo em 2010, dois meses depois do ingresso da primeira turma de cotistas negros nos cursos mais concorridos da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Foram analisados dados de 334 estudantes não cotistas dos cursos mais concorridos daquela instituição.

Os resultados indicaram atitudes muito contrárias às cotas, sobretudo às raciais. Depois da implantação, a oposição cresce para as cotas raciais e diminui para as sociais. Antes da implantação, os contrários afirmaram, sobretudo, que as cotas aumentavam o preconceito contra os negros; depois da implantação a principal justificativa foi a de que elas discriminavam os não negros. Esses resultados são discutidos como indicadores das relações entre as ideologias do paternalismo e do senso de posição grupal no preconceito racial do Brasil.

  1. Como você situa as ações afirmativas perante o Art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, baseado na igualdade universal de todos os brasileiros?

Não existe igualdade universal. A igualdade não deve ser um princípio descritivo das relações sociais, mas uma meta, um imperativo que estruture as ações políticas dos governos e as ações sociais dos grupos e organizações. Nas democracias apenas formais, como é o caso da nossa, que convivem com enormes assimetrias econômicas e sociais, o princípio da igualdade apenas legítima a lógica do mérito, permitindo que a estrutura de poder mantenha os grupos distantes em termos de acesso aos serviços e benefícios sociais. Neste sentido, para que se construa efetivamente um projeto de sociedade igualitária, é preciso tratar os desiguais de forma desigual, permitindo-lhes acesso privilegiado ao trabalho e a educação de qualidade, a fim de que em alguns anos possamos ter a equidade social, e aí sim corridas meritocráticas justas, em que todos saem do mesmo ponto e com as mesmas chances.

  1. Em sua opinião, como você define o atual modelo de cotas no Brasil, paternalismo educacional ou assistencialismo? Explique.

Nem uma coisa nem outra. A Lei 12.711 de 2012, “lei das cotas”, tenta resolver problemas de desigualdade de acesso que historicamente se construíram no Brasil e que impedem o desenvolvimento do nosso país. Economistas modernos, como Paul Krugman (nobel de economia em 2008), já perceberam que não há desenvolvimento sem igualdade. Os negros no Brasil têm renda que beira a metade da renda dos brancos, eles ocupam as piores posições sociais, têm taxas de mortalidade infantil mais elevadas, menor expectativa de vida e são a maioria da nossa população prisional. É impossível construir um país desenvolvido sem a inclusão de um grupo que compõe, em termos demográficos, 50% da nossa população (pretos e pardos no Censo de 2010). A Lei 12.711 tem um foco maior nas cotas sociais, ela procura incluir nas universidades os alunos de escolas públicas e dentre estes os que possuem renda per capita de até 1,5 salários mínimos. Este foco social por si só não resolve o problema do racismo no Brasil. As pessoas negras têm mais dificuldade de acesso à escola, há estudos que mostram que são discriminados no ambiente escolar e mesmo na atribuição de notas pelos professores. De tal forma que, ainda sendo um avanço, a “lei das cotas” precisa ser aperfeiçoada, pois a inclusão da chamada nova classe média nas Universidades públicas do país ainda não implica na inclusão de negros e brancos de forma equânime.

  1. Tendo como base os estudos de Queiroz e Santos (2006), a mudança de opinião dos pesquisados, entre 2005 e 2010, apresentam-se mais favoráveis às cotas sociais e raciais. Como você define esse movimento?

Vivemos no Brasil quase 500 anos de naturalização do racismo, de achar que tudo estava bem organizado como aparece na expressão clássica de Gilberto Freyre em Casa grande & Senzala: “os índios nas matas, os negros na cozinha e os brancos na sala”. A psicologia social, por exemplo, minha área de interesse, apenas no início da década de 1990 descobriu que há racismo no Brasil. Estamos aos poucos acordando deste sonho feliz de democracia racial e percebendo o que o racismo é capaz de fazer com as pessoas e com um país. Neste sentido, as posições mais antagônicas contra as políticas de ação afirmativa tendem a ser questionadas pelo debate mais ampliado sobre a situação dos negros no Brasil, fazendo com que as pessoas se tornem mais abertas e conscientes da desigualdade e dos meios de combatê-la. No entanto, o que o nosso estudo revela é outro cenário. Queiroz e Santos perguntaram a pessoas de modo geral, sem situações de ameaça aberta à posição dos grupos, ao status quo. Nosso estudo pergunta sobre cotas aos estudantes universitários não cotistas logo depois da entrada dos cotistas na universidade. Neste contexto, a competição é alta, o sentimento de que “estão retirando nossos direitos” faz com que se abandone a histórica retórica paternalista, presente nas teses de Freyre sobre a democracia racial, e se assuma posições ideológicas mais flagrantemente violentas de defesa de território e privilégios sociais. Penso que o racismo no Brasil está nesta fase. E, neste contexto, os movimentos sociais de defesa dos interesses dos grupos minoritários nas relações de poder têm enorme contribuição a dar.

  1. O estudo aponta que o avanço econômico não tem diminuído o racismo no Brasil. Em sua opinião, quais os caminhos para alcançar esta mudança?

Na verdade, o nosso estudo demonstra, e esta é uma linha que merece aprofundamento empírico, que o avanço dos negros em termos de igualdade de direitos, no caso específico o direito ao ensino superior, pode fazer com que o racismo no Brasil mude sua forma de manifestação, abandonando as lógicas do paternalismo, da sutileza, da suposta “docilidade dominadora” para assumir um viés mais aberto, virulento e ressentido. Penso que esta transposição de forma de expressão contribui para desnudar o racismo e torná-lo uma preocupação não só dos movimentos de minorias sociais e de alguns políticos mais à esquerda no espectro político, mas efetivamente uma preocupação de todos nós, dos pais na socialização dos filhos, das escolas, dos grupos informais e formais que compõem nossa sociedade. Isto pode ser benéfico, a longo prazo, pois admitir e trazer à luz o racismo do Brasil é uma fase necessária e incontornável para combatê-lo.

  1. Como você enxerga o sistema de cotas no Brasil a médio e longo prazo, considerando a interferência da política pública?

Toda política de ação afirmativa deve ter uma data para ser abolida, ela deve cuidar de tornar efetivamente igualitária a situação dos grupos propondo um tratamento desigual. Este tratamento desigual é, portanto, provisório. O que ocorre muitas vezes é um tipo de política de ação afirmativa que ganha contornos de demagogia por não tratar o problema na sua causa original, ou seja, por cuidar só do sintoma e não da doença. Caso o governo não invista efetivamente na melhoria do ensino público no Brasil, na geração de oportunidades de acesso e permanência de crianças pobres e também de crianças negras a boas escolas, creches e serviços de saúde, não adiantará muito a médio e longo prazo ter criado cotas nas universidades. Ou seja, se não cuidarmos dos problemas mais gerais de desigualdade no país, corremos o risco de termos algo como os norte-americanos têm, uma mobilidade social de alguns negros que não implica em mudança social do grupo como um todo.

 

Para ler o artigo, acesse:

LIMA, Marcus Eugênio Oliveira; NEVES, Paulo Sérgio da Costa; SILVA, Paula Bacellar e. A implantação de cotas na universidade: paternalismo e ameaça à posição dos grupos dominantes. Rev. Bras. Educ., Rio de Janeiro, v. 19, n. 56, mar. 2014. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-24782014000100008&lng=pt&nrm=iso>. Acessos em 25 maio  2014. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-24782014000100008.

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

Cotas universitárias no Brasil: positivo ou negativo? [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2014 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2014/06/09/cotas-universitarias-no-brasil-positivo-ou-negativo/

 

3 Thoughts on “Cotas universitárias no Brasil: positivo ou negativo?

  1. Pingback: 2 anos do Blog SciELO em Perspectiva | Informação, Tecnologia & Cultura Digital

  2. Marcos júnior on October 23, 2016 at 16:37 said:

    Posso usar esses comentários em um trabalho escolar? Esse conteúdo é muito bom!

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