Estratégia para aumentar adesão a tratamento de diabéticos e hipertensos frustra pesquisadores

Paulo Guanaes, Mestre em Comunicação e Informação em Saúde, jornalista e editor executivo do periódico Trabalho, Educação e Saúde, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Guilherme Souza Cavalcanti de Albuquerque

Guilherme Souza Cavalcanti de Albuquerque

Guilherme Albuquerque é graduado em Medicina pela UFPR, fez residência em Pediatria pelo Hospital Infantil Pequeno Príncipe, especialização em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz), e mestrado e doutorado em Educação pela UFPR. Participa do Núcleo de Estudos de Saúde Coletiva (NESC-UFPR), na linha de pesquisa “Estudos Marxistas em Saúde”, e, por meio do materialismo histórico-dialético, trabalha com os temas determinação social do processo saúde-doença, condições de vida e saúde, saúde e educação na sociedade capitalista, entre outros.

Nesta entrevista com o professor Guilherme Souza Cavalcanti de Albuquerque, coordenador do Mestrado em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Paraná (UFPR), buscou-se ampliar algumas questões tratadas no artigo “Adesão de hipertensos e diabéticos analfabetos ao uso de medicamento a partir da prescrição pictográfica”, que Guilherme escreveu em coautoria com Bárbara do Nascimento, Diego Fabian Karvat Gracia, Luisa Preisler, Paulo de Oliveira Perna e Marcelo José de Souza e Silva. Publicado no volume 14, número 2 de 2016 do periódico Trabalho, Educação e Saúde, o texto traz os resultados de uma pesquisa sobre o impacto de prescrição pictórica na adesão ao tratamento de analfabetos com as duas condições mencionadas no título do artigo.

1. De que forma ocorreu a identificação do analfabetismo como importante causa de não adesão ao tratamento medicamentoso para diabéticos e hipertensos, gênese do estudo com participantes do programa Hiperdia?

Dois dos autores do artigo publicado na Trabalho, Educação e Saúde, Bárbara do Nascimento e Diego Fabian Karvat Gracia, que hoje são médicos, mas na época do estudo eram acadêmicos de medicina, fizeram uma análise cuidadosa do impacto de algumas ações do serviço de saúde no qual estagiaram. Perceberam que, no programa de cuidado à saúde dos diabéticos e hipertensos, os resultados eram muito insatisfatórios e verificaram, por meio de entrevistas com os pacientes, que a adesão ao tratamento medicamentoso era muito ruim, especialmente entre os analfabetos. Os pacientes não compreendiam quais medicamentos deveriam tomar, em qual horário e de que modo. A investigação mostrou que, na maioria dos casos, a compreensão da receita era deficitária, pois não sabiam ler ou interpretar as orientações prescritas.

 

2. Segundo o artigo refere, há no Brasil cerca de seis milhões de portadores de diabetes e 17 milhões de portadores de hipertensão arterial, com tendência de crescimento (dados do Ministério da Saúde, Cadernos de Atenção Básica, 36 e 37). Em que medida o programa Hiperdia, instituído pelo SUS, pode contribuir para melhorar esse panorama?

O programa Hiperdia traz como grande contribuição, para o controle dessas doenças, a disponibilização dos medicamentos, das consultas médicas, dos exames complementares e do atendimento prestado pela equipe de saúde. Em relação à prevalência de tais doenças, a contribuição é praticamente nenhuma. A gênese de tais enfermidades encontra-se no modo de vida imposto à população, marcado por alto grau de insegurança, estresse, insatisfação com o trabalho, privação do acesso a bens e serviços indispensáveis para a produção da condição de humanidade em cada um. A subordinação de todos os aspectos da vida à necessidade de valorização do capital impõe, por um lado, o consumo de alimentos que induzem à obesidade, hipertensão e diabetes, e por outro, a falta de tempo, energia, espaço e segurança para a realização de atividades físicas saudáveis. Nisso, no modo de organizar a vida em sociedade, no modo de produção, a Saúde Pública não mexe. Como política pública de Estado, seu papel é de reprodução da ordem, nunca de afrontá-la. E para reverter a tendência patogênica da sociedade, a ordem precisaria ser revolucionada, modificada para uma outra que privilegiasse a vida e o desenvolvimento humano em vez do mercado, da geração de mais valor a partir da exploração dos trabalhadores.

 

3. Os pesquisadores reconhecem que a prescrição pictográfica fez crescer a adesão de analfabetos portadores de hipertensão e diabetes ao tratamento medicamentoso (observou-se a elevação da adesão de 60% para 93,33%), mas questionam esse tipo de intervenção adaptativa. Por quê?

Porque, se estamos realmente interessados em melhorar a saúde, não podemos nos satisfazer com a simples adesão obediente à prescrição dos medicamentos. Ter saúde significa estarmos vivos e em condições de realizarmos em nós aquilo que o gênero humano oferece como possibilidade em cada momento histórico. Ou seja, em condições de desenvolver toda a nossa potencialidade, dada pela nossa constituição genofenotípica, nosso corpo orgânico e pelos produtos do trabalho humano acumulado ao longo das gerações, o nosso corpo inorgânico, como Marx denominou nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos. Melhorar a adesão ao tratamento medicamentoso é importantíssimo, pois contribui para manter vivas aquelas pessoas, mas obter esse resultado com a estratégia utilizada nos frustrou imensamente por percebermos que, ao mesmo tempo, estávamos contribuindo para adaptar aquelas pessoas a uma condição de precariedade. Estávamos contribuindo para manter a vida nas condições de privação em que se encontravam e não para aproximá-las da condição de realização do humano, oferecida como possibilidade pela humanidade. Um dos produtos fundamentais da condição de humanidade é a linguagem, o que inclui o domínio da escrita e da leitura. É muito difícil aceitar como bom um resultado que legitima a negação da posse desse produto por uma parcela considerável da população. Se nem a esse produto da civilização essas pessoas têm acesso, imaginem o quanto estão longe da condição de aquisição dos atributos humanos possíveis na atualidade.

 

4. O artigo afirma que há uma contradição nas práticas hegemônicas da Saúde Pública, cujos serviços de saúde fazem a medicalização da sociedade ao transfigurar problemas de origem social em problemas médicos, ocultando sua determinação social. Até que ponto o materialismo histórico-dialético usado como fundamento metodológico auxiliou nesse desvendamento?

O materialismo histórico-dialético nos permite enxergar para além das aparências dos fenômenos, compreender sua gênese, identificar sua determinação mais simples, potencializando, assim, uma ação mais efetiva sobre a realidade. É um recurso científico indispensável para compreendermos que todos os aspectos da vida humana estão subordinados à forma como se estrutura e funciona a sociedade. E o que caracteriza uma sociedade é o seu modo de produzir aquilo que é necessário para manter e realizar a vida, ou seja, seu modo de produção, suas forças produtivas, suas relações de produção. Quando nos apropriamos dessa ciência, cada aspecto da vida não nos aparece isolado e desconexo, mas como expressão de uma totalidade que os engendra e constitui. A saúde, então, é compreendida como expressão da sociedade em que vivemos, assim como os serviços de saúde. Compreender o papel que o Estado exerce para a reprodução do modo de produção vigente nos faz perder a ingenuidade e enxergar os limites e possibilidades de sua ação. E a medicalização é uma potente arma de preservação da ordem. Se passamos a localizar no corpo biológico das pessoas a origem e a solução dos problemas de saúde, retiramos de tela a ordem social, ajudando a preservá-la. Em uma sociedade capitalista, por exemplo, por meio da medicalização, não apontamos a exploração dos trabalhadores como fonte de adoecimento, prescrevemos alguma droga que os façam adaptar-se ao sofrimento imposto pelo trabalho extenuante, alienante e limitador do desenvolvimento de suas potencialidades.

Para ler o artigo, acesse

ALBUQUERQUE, G. S. C. et al. Adesão de hipertensos e diabéticos analfabetos ao uso de medicamento a partir da prescrição pictográfica. Trab. educ. saúde [online]. 2016, vol.14, n.2, pp.611-624. [viewed 17th June 2016]. ISSN 1678-1007. DOI: 10.1590/1981-7746-sip00112. Available from: http://ref.scielo.org/xx54wv

Link externo

Trabalho, Educação e Saúde – TES: www.scielo.br/tes

Sobre Paulo Guanaes

Paulo Guanaes

Paulo Guanaes

Paulo Guanaes tem mestrado em Informação e Comunicação em Saúde pelo Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Icict/Fiocruz), graduação em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), MBA em Marketing pela Fundação Getulio Vargas, além do curso de extensão Formação de Tradutores Inglês-Português pelo Departamento de Letras da PUC-Rio. Jornalista e tradutor, atualmente é tecnologista em saúde pública na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fiocruz, onde exerce as funções de editor executivo e editor de texto do periódico Trabalho, Educação e Saúde. E-mail: pauloguanaes@fiocruz.br

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

GUANAES, P. Estratégia para aumentar adesão a tratamento de diabéticos e hipertensos frustra pesquisadores [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2016 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2016/06/28/estrategia-para-aumentar-adesao-a-tratamento-de-diabeticos-e-hipertensos-frustra-pesquisadores/

 

One Thought on “Estratégia para aumentar adesão a tratamento de diabéticos e hipertensos frustra pesquisadores

  1. Informação de qualidade aliada a políticas públicas sobre hipertensão é o que está faltando em nosso país! Muito obrigada por compartilhar este maravilhoso conteúdo!

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