Conservadorismo, religião e política: um diálogo entre Brasil e Argentina

Regina Facchini, pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu e editora do cadernos pagu, Campinas, SP, Brasil

Carolina Parreiras, pós-doutoranda do Departamento de Antropologia da USP, São Paulo, SP, Brasil

A contraposição de setores conservadores às conquistas e à visibilidade de movimentos de minorias parece constituir como um dos principais obstáculos para a garantia dos direitos fundamentais de uma série de sujeitos em vários países. O foco na moral sexual da agenda conservadora tem alvejado especialmente os direitos relacionados à equidade de gênero e à diversidade sexual e de gênero.

Para compreender as condições que a tornam possível essa nova virada conservadora, Regina Facchini e Horacio Sívori (2017) indicam a necessidade de deslocar oposições como secular/religioso, laico/religioso, científico/religioso, político-jurídico/religioso ou mesmo estatal/eclesial; e perguntar então que outras categorias analíticas poderiam subsidiar sua abordagem. Ronaldo de Almeida e Juan Marco Vaggione publicaram no nº 50 do cadernos pagu artigos que colaboram para interrogar essas oposições a partir de pesquisas no Brasil e na Argentina.

A “onda conservadora” no Brasil: conexões parciais entre “evangélicos” e conservadorismo

O artigo de Ronaldo de Almeida, “A onda quebrada: evangélicos e conservadorismo”, analisa as linhas de força que conectam parcialmente “evangélicos” e conservadorismo no Brasil atual. Para tanto tece uma reflexão teórico-metodológica que considera que termos como “conservadores”, “fascistas”, “fundamentalistas”, bem como as referências generalizantes a “os evangélicos”, construídos relacionalmente no debate público, circunscrevem “um conjunto relativamente variado de discursos, valores, ações e posicionamentos políticos com interesses parcial e conjunturalmente comuns”.

O artigo traz ainda dados para compreender os modos pelos quais, marcando uma virada a respeito das formas clássicas de influência da Igreja Católica na esfera pública, lideranças do campo evangélico pentecostal têm se lançado massivamente à política e disputado cargos eletivos, principalmente no legislativo e a partir de uma ampla gama de partidos políticos, entre os quais prevalecem partidos de centro-direita. Analisa dados sobre a chamada Bancada Evangélica e sobre sua atuação no Congresso Nacional.

Na entrevista em vídeo, o autor explora sentidos associados a uma série de categorias acusatórias relacionadas ao conservadorismo e indica quatro linhas de força que estabelecem conexões parciais entre “evangélicos” e “conservadorismo”. Ronaldo de Almeida é doutor em Ciências Sociais (Antropologia Social) pela Universidade de São Paulo, professor do Departamento de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas, pesquisador do CNPq nível 2 e Diretor Científico do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Tem experiência nas áreas de Antropologia da Religião e Antropologia Urbana, atuando principalmente nos seguintes temas: religião, pentecostalismo, cidade e pobreza.

 

Secularismo estratégico e cidadania religiosa na Argentina: análise a partir da atuação política de católicos

O artigo “La Iglesia Católica frente a la política sexual: la configuración de una ciudadanía religiosa”, de Juan Marco Vaggione parte do contexto argentino e da atuação política do ativismo católico conservador. Sua principal contribuição é analisar o que denomina de cidadania religiosa, um processo complementar ao “secularismo estratégico”, já descrito pelo autor (VAGGIONE, 2005), que se refere à intensificação do uso de argumentações e formas de atuação seculares para potencializar o impacto da Igreja através do direito.

A metodologia parte da articulação de dois conjuntos de materiais. Documentos da Igreja Católica, em especial do Vaticano, constituem o primeiro conjunto, no qual se delineiam os principais posicionamentos e rearticulações frente aos direitos sexuais e reprodutivos. O segundo conjunto de materiais advém de pesquisas realizadas na Argentina sob a supervisão do pesquisador, com foco nas principais estratégias da Igreja Católica e setores aliados para impactar processos de sanção e de interpretação do direito.

A “cidadania religiosa” diz respeito a um processo de reconfiguração da cidadania determinada pelo religioso, tendo como eixo articulador a defesa de uma ordem moral universal na mobilização e proteção das crenças religiosas em oposição aos direitos sexuais e reprodutivos. Nesse processo, de acordo com o autor, as figuras do “cidadão” e do “crente” se imbricam em três dimensões: nas identidades, nas práticas e no reconhecimento de direitos.

Juan Marco Vaggione

Juan Marco Vaggione

Veja abaixo a entrevista de Regina Facchini a Juan Marco Vaggione, que é doutor em Direito e em Sociologia e atualmente é pesquisador do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET) e Professor da Faculdade de Direito e Ciências Sociais da Universidade Nacional de Córdoba, Argentina.

 

1. Juan Marco, em seu artigo para cadernos pagu, você aborda o que chama de “cidadania religiosa” como algo que se constitui como estratégia de resistência à “sexualização da cidadania”. Poderia nos falar um pouco mais sobre as condições que permitem que estes dois temas, sexualidade e religião, que foram até poucas décadas relegados ao âmbito do privado, ganhem tanta centralidade no âmbito do debate público internacional?

Essa é uma questão complexa porque envolve diversos ângulos e debates. Um deles, que está ligado à minha pesquisa, tem menos relação com as razões (que são muitas) pelas quais a sexualidade e /ou a religião ganharam presença pública e política, mas com as limitações dos quadros teóricos dos quais dispomos para a compreensão desse fenômeno. Religião e sexualidade, que durante décadas foram analisados (e construídos) como exteriores à política, agora são fontes de debates públicos e legais em nível nacional e internacional. Longe de cumprir o mandato moderno da privatização, ambas as questões são centrais na análise política contemporânea (tanto separadamente como em suas interações complexas). A partir do movimento feminista e de diversidade sexual, temos desenvolvido instrumentais analíticos e normativos para compreender (e visibilizar) de diferentes maneiras as conexões entre o poder e ordem sexual. Remover a sexualidade do espaço restrito do privado foi, e ainda é, um dos aspectos centrais de agendas políticas e acadêmicas. Por outro lado, nos parece mais difícil (e ameaçador por razões óbvias) entender o religioso como uma dimensão legítima da política. As fronteiras e limites que desarticulamos, a partir dos estudos de gênero e de sexualidade, para analisar como o poder atravessa e constrói a ordem sexual, são reforçadas quando consideramos as crenças e instituições religiosas.

Assim, o desafio, não é apenas entender por que ou como se politizam as grandes religiões frente ao impacto dos movimentos feminista e de diversidade sexual, mas particularmente sofisticar nossos quadros analíticos e normativos para compreender a complexidade política do religioso. No geral, nossas abordagens teóricas têm sido pouco adequadas para capturar as muitas maneiras pelas quais o religioso sempre afetou (e afeta) a política. Ao insistir na privatização do religioso, na insuficiente laicidade ou em um binarismo acrítico entre religioso e secular, deixamos de analisar (e de entender) as principais manifestações públicas de crenças e instituições religiosas, particularmente aquelas que se ativam como resultado da política sexual contemporânea. Para analisar a politização do religioso em reação aos direitos sexuais e reprodutivos fenômeno que em outros artigos denominei de politização reativa (VAGGIONE, 2005) também é necessário rever e reconsiderar os quadros analíticos e estratégias políticas que distorcem (simplificando) as maneiras pelas quais as instituições e crenças religiosas impactam debates públicos e até mesmo a construção do direito (secular).

2. Poderia se dizer que os processos de “cidadanização da sexualidade” permitiram a rearticulação entre as figuras do “crente” e do “cidadão” e a constituição da cidadania religiosa?

O artigo busca precisamente analisar o processo de politização do religioso em sua relação (antagônica na maioria dos casos) com o reconhecimento de direitos sexuais e reprodutivos. Sem reduzir toda manifestação política do religioso a uma reação contrária a esses direitos, é também necessário entender as múltiplas conexões e articulações entra a política sexual e a política religiosa nas sociedades contemporâneas. O artigo utiliza o conceito de cidadania religiosa para captar (parcialmente) algumas estratégias da hierarquia católica e de setores aliados frente ao impacto dos movimentos feministas e por diversidade sexual sobre os direitos cidadãos. Essas estratégias, que se adaptam e adequam a temporalidades distintas, incluem (entre outras) a repolitização das crenças religiosas para confrontar a demanda por direitos sexuais e reprodutivos. Essa repolitização é analisada no artigo por meio de uma nova articulação (que apresenta continuidades e rupturas) entre as figuras do crente e do cidadão. Para isso se propõe três aspectos ou dimensões que, em reação à cidadanização da sexualidade, são parte de um processo de consolidação de uma cidadania religiosa: o delineamento de novas fronteiras identitárias ou culturais que transcendem a nação, a mobilização de crenças para a participação pública e o alargamento da proteção dos direitos religiosos.

3. Você argumenta que a consolidação de uma cidadania religiosa é um processo que transcende o Estado-nação. Você percebe formas específicas desse processo na Argentina ou em outros países latino-americanos?

Embora a análise para identificar as principais dimensões da cidadania religiosa esteja ancorada na Argentina, esse fenômeno é semelhante ao que se observa em outros países da região. Como tenho analisado em outras publicações (VAGGIONE, 2012), os principais atores do ativismo católico conservador devem ser entendidos como parte de um processo que ainda que oriente suas ações no interior dos Estados, constroem suas agendas, estratégias e discursos para além deles. Por um lado, a Igreja Católica sempre foi uma instituição global, que combina um vértice no Vaticano com uma rede descentralizada (em nível nacional e local). Por outro lado, as organizações autointituladas “pró-vida” e “pró-família” venham se articulando há anos em conferências e reuniões supranacionais.

Assim, embora a consolidação de uma cidadania religiosa se manifeste no interior do Estado, ela constantemente o transcende. Cada uma das dimensões propostas no artigo como parte dessa religionização da cidadania tem suas manifestações na Argentina (ou nos países da região), mas é também reflexo de dinâmicas transnacionais; são parte de reações que transpassam fronteiras do Estado e do direito nacional. Sem ignorar as especificidades de cada país, também é importante notar as semelhanças marcantes nas formas pelas quais se resiste ao reconhecimento ou à vigência dos direitos sexuais e reprodutivos. Por exemplo, as fronteiras identitárias e culturais que se mobilizam contra esses direitos não são (ou não são tanto) as da nação católica, como foram anteriormente, mas a necessidade de resistir a uma “ideologia de gênero” cuja conceitualização é estruturada de forma semelhante em diferentes países. O chamado a cidadãos, políticos e acadêmicos para que se mobilizem em defesa da vida e da família em diferentes países retoma quase literalmente as instruções emanadas do Vaticano. O uso de objeção de consciência para deslegitimar as leis sobre saúde sexual e reprodutiva é mobilizado em vários cenários a fim de deslegitimar legislações existentes. Finalmente, a construção dos direitos sexuais e reprodutivos como uma ameaça à liberdade religiosa também é um fenômeno que pode ser observado em diferentes contextos nacionais e transnacionais.

4. No artigo, você aborda a configuração de uma “cidadania religiosa” como um processo complementar à “secularização estratégica”. Poderia nos dar alguns exemplos de como tem se dado essa articulação?

Quando comecei a pesquisar sobre o conservadorismo religioso em nossa região, no início dos anos 2000, fiquei surpreso entre outras coisas pelas formas pelas quais sua atuação transcendia a dicotomia religioso-secular. Enquanto a partir de diferentes análises se insistia em denominá-los “fundamentalista” ou se propunha a laicidade como horizonte normativo para contrapor sua influência, os atores e discursos conservadores adaptavam sua atuação à democracia laica como sistema e superavam a dicotomia entre religioso e secular. São exemplos a crescente presença de organizações da sociedade civil que se autodenominam “pró-vida” ou “pró-família” que foram substituindo os líderes religiosos e a face pública do ativismo conservador, bem como o uso de argumentos de corte científico, bioético e jurídico que deslocam (pelo menos em alguns setores do ativismo) as justificativas baseadas na tradição religiosa ou em livros sagrados. Esta abordagem do tema me levou a propor, há mais de dez anos atrás, o conceito de “secularismo estratégico” (VAGGIONE, 2005) para capturar as principais mutações ou adaptações do ativismo católico conservador contra a política sexual contemporânea.

Este artigo visa complementar essas análises, concentrando-se nas maneiras pelas quais o religioso é mobilizado contra os direitos sexuais e reprodutivos. Sem a pretensão de dizer que é um fenômeno completamente novo (pelo contrário, o uso político da religião tem uma longa história), o que busco identificar são as principais manifestações que são produto da (e reações a) política sexual contemporânea. Por observar as manifestações de corte “secular”, nos primeiros anos de minha pesquisa, desloquei de minhas análises as renovadas estratégias que politizam o religioso com a finalidade de resistir às demandas feministas e por diversidade sexual. Embora o conceito de secularismo estratégico concentre-se nos principais deslocamentos em direção ao secular (nos atores e nos discursos), o conceito de cidadania religiosa busca identificar as formas pelas quais se politizam as crenças religiosas como uma estratégia do ativismo católico conservador. Embora essa politização indique continuidades com um processo característicos das religiões em geral, também inscreve novas manifestações em resposta ao impacto do movimento feminista e por diversidade sexual. No entanto, ambos os conceitos compartilham o interesse em compreender as maneiras pelas quais o ativismo católico conservador procura influenciar a construção do direito secular. Frente ao impacto do movimento feminista e por diversidade sexual, formas de regular a sexualidade, a reprodução e o parentesco entraram na arena pública interrompendo ou ao menos produzindo fissuras no poder de determinação da Igreja Católica sobre o direito secular. Tanto o conceito de “secularismo estratégico” como o de “cidadania religiosa” procuram identificar as renovadas estratégias de setores católicos conservadores para manter ou recuperar sua influência sobre a definição dos limites legais e culturais da ordem sexual contemporânea. O primeiro conceito considera o deslocamento em direção ao secular, enquanto o segundo se concentra em entender as políticas do religioso; ambos evidenciam estratégias do ativismo conservador sobre o direito como terreno material e simbólico para o controle da ordem sexual.

Referências

VAGGIONE, J. M. Reactive politicization and religious dissidence: the political mutations of the religious. Social Theory and Practice, v. 31, n. 2, p. 233-255, 2005. DOI: 10.5840/soctheorpract200531210.

Para ler os artigos, acesse

ALMEIDA, R. A onda quebrada – evangélicos e conservadorismo. Cad. Pagu[online]. 2017, n.50 , e175001. [viewed 27 June 2017]. ISSN 1809-4449. DOI: 10.1590/18094449201700500001. Available from: http://ref.scielo.org/5zqkb7

FACCHINI, R. and SÍVORI, H. Conservadorismo, direitos, moralidades e violência: situando um conjunto de reflexões a partir da Antropologia. Cad. Pagu [online]. 2017, n.50 , e175000. [viewed 27 June 2017]. ISSN 1809-4449. DOI: 10.1590/18094449201700500000. Available from: http://ref.scielo.org/m345q8

VAGGIONE, J. M. La Iglesia Católica frente a la política sexual: la configuración de una ciudadanía religiosa. Cad. Pagu [online]. 2017, n.50 , e175002. [viewed 27 June 2017]. ISSN 1809-4449. DOI: 10.1590/18094449201700500002. Available from: http://ref.scielo.org/hfmh68

VAGGIONE, J. M. La “cultura de la vida”: desplazamientos estratégicos del activismo católico conservador frente a los derechos sexuales y reproductivos. Relig. soc. [online]. 2012, vol.32, n.2, pp.57-80. [Viewed 22 June 2017]. ISSN 0100-8587. DOI: 10.1590/S0100-85872012000200004. Available from: http://ref.scielo.org/5z6g7b

Link externo

cadernos pagu – CPA: www.scielo.br/cpa

Sobre Regina Facchini

Regina Facchini

Regina Facchini

Regina Facchini é doutora em Ciências Sociais (Unicamp), pesquisadora do Núcleo de Estudos do Gênero Pagu, professora dos programas de pós-graduação em Antropologia Social e em Ciências Sociais da Unicamp. Atualmente é editora do cadernos pagu e diretora regional sudeste da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Pesquisa sobre gênero e sexualidade em suas articulações com movimentos sociais, violência, saúde, políticas públicas e produção de conhecimento científico. Campinas, São Paulo, Brasil.

 

Sobre Carolina Parreiras

Carolina Ferreira

Carolina Parreiras

Carolina Parreiras é doutora em Ciências Sociais (Unicamp), pós-doutoranda do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP). Pesquisa sobre gênero e sexualidade em suas articulações com ciberespaço; etnografia; antropologia urbana; violência. São Paulo, SP, Brasil.

 

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

FACCHINI, R. and PARREIRAS, C. Conservadorismo, religião e política: um diálogo entre Brasil e Argentina [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2017 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2017/06/27/conservadorismo-religiao-e-politica-um-dialogo-entre-brasil-e-argentina/

 

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