Os impactos na saúde do povo Munduruku após séculos de invasões e violência

Silvia de Souza Leão, Jornalista, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Linguagens e Cultura da Universidade da Amazônia (Unama), Belém, PA, Brasil

Com argumento e evidências contundentes, Daniel Scopel, Raquel Paiva Dias-Scopel e Esther Jean Langdon (2018) apontam que as políticas públicas que investem consideráveis recursos na atenção à saúde indígena são as mesmas que permitem agressões ao território indígena. Eles estudaram eventos e contextos, marcados por epidemias e violência interétnica além de estratégias de sobrevivência, cura e doença entre os Munduruku.

No artigo, “A cosmografia Munduruku em movimento: saúde, território e estratégias de sobrevivência na Amazônia brasileira” os pesquisadores apresentam o povo Munduruku, que vive em no Pará, Mato Grosso e Amazonas e, ainda que sejam um mesmo povo, possuem particularidades locais, que vão desde diferenças do ambiente que habitam e da memória construída até aos processos históricos vividos. Suas origens estão ligadas a territórios que cobrem desde o rio Tapajós até o Madeira.

Para Ytanajé Coelho Cardoso, mestre em Letras e Artes, pela Universidade do Estado do Amazonas, professor efetivo da Secretaria Estadual de Educação do Amazonas e professor substituto na Universidade Federal do Amazonas, pertencente ao povo Munduruku, e que estuda discurso indígena, o trabalho sobre a saúde dos povos Munduruku é de grande valia. “Os trabalhos dos professores Raquel e Daniel Scopel são de fundamental importância para a reflexão da própria comunidade”, explica. Ytanajé lembra que, antes dos trabalhos realizados pelos pesquisadores, não havia nenhum trabalho dessa natureza sobre os Munduruku. “Foi, assim, que eu percebi a importância desses trabalhos de campo sobre as reflexões, sobretudo, etnográficas do povo Munduruku, do Amazonas”.

Raquel Paiva Dias-Scopel, antropóloga da Fundação Oswaldo Cruz, no Mato Grosso do Sul, e uma das autoras do artigo, fala da relação ambígua das políticas nacionais (CARDOSO, 2015; LANGDON; GARNELO, 2017) com relação às populações indígenas.

Para Raquel, “Ela [a política] é ambígua porque, por um lado, é possível identificar o desrespeito e violência física estrutural dado que a longa história de contato dos Munduruku e dos invasores é permeada por mortes, epidemias e batalhas que deixaram marcas vivas na memória dos Munduruku do rio Canumã”.

Compreensão de saúde — A falta de diálogo, o desconhecimento dos protocolos indígenas e por ignorar a cosmologia desses povos, as práticas de autoatenção (MENÉNDEZ, 2017) que relacionam a saúde, o ambiente e o corpo, trouxeram diversas ações de desrespeito ao povo Munduruku, como também ocorreu em outro momento histórico, esse mais contemporâneo, durante a construção da usina hidrelétrica Teles Pires, localizada na divisa entre os estados do Mato Grosso e do Pará. Esse é um exemplo concreto da violência estatal contra os índios. “Esse comportamento replica o comportamento de mais de um século em que a violência do Estado foi usada contra os Munduruku para defender interesses alheios em nome de um projeto desenvolvimentista do Estado”, explica Raquel.

Ytanajé lembra, que a maioria dos Munduruku está presente no estado do Pará. “Nós sabemos que tem Munduruku aqui no Amazonas, no Mato Grosso e no Pará. No Pará, está a maioria. Aqui no Amazonas existem, aproximadamente, 7 mil Mundurukus. Por isso, é muito importante esse trabalho, pois revelou a complexidade e práticas de autoatenção nas comunidades Munduruku do Amazonas.”

O conceito de autoatenção é instrumental para a análise que Scopel, Dias-Scopel e Langdon (2018). Na discussão, eles explicam que a autoatenção não se restringe à terapia, em casos de doença, mas compreende também a promoção da saúde, da qualidade de vida e da reprodução coletiva, segundo a perspectiva dos Munduruku.

Com isso, as práticas de autoatenção e as estratégias de sobrevivência coletiva fazem parte do modo de agir sobre a qualidade de vida dos Munduruku. Evitar conflitos, respeitar os animais implica diretamente na relação desses povos com o meio no qual vivem. O estudo mostra que, em contraste a esse modo de viver dos Munduruku, está a materialidade capitalista na qual o local é tido meramente como um espaço produtivo.

Ytanajé destaca que o trabalho é revelador aos próprios Munduruku: “O trabalho deu, ao nosso povo, que ainda está lendo e refletindo sobre os textos que chegaram às comunidades, é que daqui pra frente nós podemos pensar de maneira mais ampla os processos de autoatenção que inclui tanto as práticas biomedicinais tradicionais quanto a própria crença do povo Munduruku”.

História — A pesquisa realizou levantamentos de eventos históricos para os Munduruku e os relatos fornecem elementos-chave de interpretação para se compreender as motivações coletivas, as memórias sociais e os acontecimentos mais recentes nas experiências Munduruku. No Canumã, por exemplo, a trajetória para a demarcação da TI Kwatá Laranjal é notável. Segundo os autores, “A demarcação da terra indígena dinamizou a memória coletiva e impulsionou os diversos segmentos da sociedade Munduruku à ação, à participação e à colaboração, reforçando coesivamente sua própria coletividade […] A reconquista do território, segundo os próprios Munduruku da TI Kwatá Laranjal, é vista como um passo importante para a garantia de sua reprodução biossocial.” (SCOPEL; DIAS-SCOPEL; LANGDON, 2018, p. 100-101).

Exemplos outros sobre a violência decretada por grandes empreendimentos como a construção de hidrelétricas podem ser encontrados nas páginas do BMPEG. Ciências Humanas. Confira “Licenciamento ambiental de grandes empreendimentos: quais os limites para avaliação de impactos diretos e indiretos em saúde? Estudo de caso na Terra Indígena Wajãpi, Amapá”, de Moreno et al. (2018).

Na história do povo Munduruku, destacam-se os relatos dos anciãos da comunidade que, lembrando da violência do Estado, retomam a perseguição indígena desde o século passado: “[…] esse processo de violência continuada configurou-se como clara ameaça à reprodução social Munduruku.” (SCOPEL; DIAS-SCOPEL; LANGDON, 2018, p. 98). Assista a seguir os vídeos de Ytanajé Coelho Cardoso e Raquel Paiva Dias-Scopel.

 

Referências

CARDOSO, M. D. Políticas de saúde indígena no Brasil: do modelo assistencial à representação política. In: LANGDON, Esther Jean; CARDOSO, Marina D. (Ed.). Saúde indígena: políticas comparadas na América Latina. Florianópolis: Editora da UFSC, 2015. p. 83-106. (Coleção Brasil Plural).

LANGDON, E. J. and GARNELO, L. Articulación entre servicios de salud y “medicina indígena”: reflexiones antropológicas sobre política y realidad en Brasil. Salud Colectiva, v. 13, n. 3, p. 457-470, 2017. ISSN: 1851-8265 [viewed 9 November 2018]. DOI: 10.18294/sc.2017.1117. Available from: http://revistas.unla.edu.ar/saludcolectiva/article/view/1117

MENENDEZ, Eduardo L. Modelos de atención de los padecimientos: de exclusiones teóricas y articulaciones prácticas. Ciênc. saúde coletiva, v. 8, n. 1, p. 185-207, 2003. ISSN: 1413-8123 [viewed 9 November 2018]. DOI: 10.1590/S1413-81232003000100014. Available from: http://ref.scielo.org/5t48rj

Para ler os artigos, acesse

MORENO, E. S., OLIVEIRA, J. C., SHIMABUKUR, P. H. F. and CARVALHO, L. Licenciamento ambiental de grandes empreendimentos: quais os limites para avaliação de impactos diretos e indiretos em saúde? Estudo de caso na Terra Indígena Wajãpi, Amapá. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciênc. hum. [online]. 2018, vol.13, n.3, pp.519-540. ISSN 1981-8122. [viewed 26 November 2018]. DOI: 10.1590/1981.81222018000300003. Available from: http://ref.scielo.org/mbtbjm

SCOPEL, D., DIAS-SCOPEL, R. and LANGDON, E. J. A cosmografia Munduruku em movimento: saúde, território e estratégias de sobrevivência na Amazônia brasileira. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciênc. hum. [online]. 2018, vol.13, n.1, pp.89-108. ISSN 1981-8122. [viewed 26 November 2018]. DOI: 10.1590/1981.81222018000100005. Available from: http://ref.scielo.org/wnypsf

Links externos

Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas – BGOELDI: www.scielo.br/bgoeldi

Boletim: www.editora.museu-goeldi.br/humanas

Boletim no Issuu: www.issuu.com/bgoeldi_ch

Facebook: www.facebook.com/boletimgoeldiCH

Sobre Ytanajé Coelho Cardoso

Ytanajé Coelho Cardoso

Ytanajé Coelho Cardoso

Mestrado em Letras e Artes pela Universidade do Estado do Amazonas. Graduação em Letras – Língua Portuguesa (2011-2014), pela Universidade do Estado do Amazonas. Possui experiência em Linguística, com ênfase na área de Línguas Indígenas, especificamente a língua munduruku. Também atua na linha da Etnolinguística e Análise de Discurso.

Sobre Raquel Paiva Dias-Scopel

Raquel Paiva Dias-Scopel

Raquel Paiva Dias-Scopel

Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina, é antropóloga pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz, no escritório de Campo Grande – MS. Faz parte da rede Saúde: práticas locais, experiências e políticas públicas do Instituto Nacional de Pesquisa Brasil Plural e tem interesse nos seguintes temas: saúde indígena, cosmologia e saúde, corpo e parentesco, gestação, parto e pós-parto, agente indígena de saúde, Community Health Workers, atenção diferenciada e política de saúde indígena. E-mail: raquel.scopel@gmail.com

 

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

LEÃO, S. S. Os impactos na saúde do povo Munduruku após séculos de invasões e violência [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2018 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2018/11/28/os-impactos-na-saude-do-povo-munduruku-apos-seculos-de-invasoes-e-violencia/

 

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