Ana Carolina Sá Teles, Doutoranda na FFLCH-USP/ FAPESP, São Paulo, SP, Brasil
Roland Chemama, no ensaio “Parênteses”, parte do referencial psicanalítico da imagem e, assumindo a precedência da literatura em relação à psicanálise, indica como a obra de Machado de Assis aborda a nossa relação com o mundo do espelho. Segundo o psicanalista, que é membro da Association Lacanienne Internationale e uma das principais referências atuais para os estudos sobre literatura e psicanálise, a obra machadiana constitui uma lição de estilo e de ética, tanto para a literatura como para a clínica psicanalítica e o leitor. Isso se dá na forma como a obra machadiana lida com a falta subjetiva e com a abordagem do objeto de desejo, de maneira sensível, oblíqua e na dimensão do humor.
A discussão proposta por Chemama tem precedentes na recepção crítica da obra machadiana, na qual há importantes marcos quanto à abordagem dos temas da imagem e do especular.
Augusto Meyer narra, de forma espelhada, sobre como ele mesmo foi leitor do conto “O espelho”. Antonio Candido enfeixa o problema da identidade na obra machadiana com referência ao mesmo conto. Os ensaios de Alfredo Bosi, por sua vez, buscam descrever uma fenomenologia do olhar machadiano também tendo o conto como uma das suas principais referências. Ainda anteriormente, em 1939, de forma polêmica (e talvez resistente), Mário de Andrade associou a fixação da obra machadiana pelos temas dos olhos e dos braços com a proposição de uma psicologia e de uma erótica.
Nesse sentido, observamos que o ensaio de Roland Chemama responde hoje, de forma indireta, a perguntas formuladas por Mário há quase oito décadas. Portanto, inclusive nesse ponto se observa a intuição do artista, que precede as possibilidades de formulações teóricas.
A partir principalmente da análise de Dom Casmurro e do conto “Uns braços”, Chemama reconhece que, em Machado de Assis, a dimensão do desejo no texto se faz atingir por uma “escritura do parêntese”. Dessa forma, o ensaísta propõe o que ele mesmo chama de “deslizamentos sub-reptícios” das imagens dos braços para o sinal gráfico dos parênteses e, por fim, do texto escrito ficcional para a teoria psicanalítica. Ou seja, bem como os braços podem tatear o objeto de desejo, mas nunca se fundir a ele, também os parênteses “incluem” – como uma imagem – a dissimulação de um objeto que pode motivar o desejo.
Segundo Chemama, a ficção de Machado de Assis, especialmente em Dom Casmurro, figura uma abordagem oblíqua do objeto de desejo, ao inserir parênteses e ao promover cortes frequentes no texto. Assim, quando não o faz, o sujeito se angustia; isso ocorre, por exemplo, nas passagens em que Bento Santiago se fixa ora nos braços de Capitu, ora nos de Sancha, ora nos de Escobar. Nesse sentido, a análise de Chemama demonstra que Machado de Assis desenha a forma como estamos presos ao especular, seja de maneira fisiológica ou patológica.
No ensaio “Dualidade e ironia em Esaú e Jacó”, a professora da UERJ, psicanalista e membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Ana Maria Medeiros da Costa investiga justamente o tema do familiar estranho que é angustiante e que advém do “narcisismo das pequenas diferenças”, situado no duplo da obra literária. Medeiros da Costa propõe que a ironia – que a autora relembra significar “dissimulação” em grego –, no romance Esaú e Jacó, constitui uma espécie de terceira posição (ou de saída narrativa) em relação ao aprisionamento nas dualidades da trama. Ou seja, enquanto os personagens gêmeos Pedro e Paulo não se diferenciam de fato, a narrativa machadiana transpõe o motor duplo de rivalidade, ao insinuar, por meio do humor, no trabalho com jogos de linguagem, que essa rivalidade é meramente narcisista. Com referência à teoria lacaniana, Costa interpreta como, neste romance, há uma continuidade na passagem do subjetivo ao social, possibilitando ao leitor uma tomada de consciência das diferenças que giram em falso.
Segundo Ana Maria Medeiros da Costa, em Esaú e Jacó, mais uma vez, Machado de Assis narra a formação subjetiva como uma que passa necessariamente pela imagem e pelo especular. No entanto, na história de Pedro e Paulo, o especular expressa ou o narcisismo ou o espelhamento na imagem do outro, desembocando, portanto, em agressividade. Não há diferenças separadoras. Trata-se, antes, de figuras presas num espelho, que são dependentes e complementares. Nesse sentido, a ironia machadiana, que passa pelo humor, pode levar o leitor não ao retorno das dualidades, mas talvez à interpretação não narcísica.
Para concluir, nestes dois artigos da nova edição de Machado de Assis em linha, percebe-se como o tema do especular é figurado pela obra machadiana como matéria ficcional e como dinâmica implicada na relação com o leitor, seja por meio de estruturas narrativas, de modos estilísticos ou de modos enunciação. Assim, ao leitor é possível acessar o texto de Machado por meio dos papéis que a obra potencialmente lhe reserva. Esse papel movente pode ser desenvolvido no sentido de assumir uma identificação, uma rivalidade, ou ainda, o que talvez seja o mais interessante, no sentido de exercitar uma reflexão crítica.
Para ler os artigos, acesse
CHEMAMA, R. Parênteses. Machado Assis Linha [online]. 2016, vol.9, n.18, pp.74-83. [viewed 28th October 2016]. ISSN 1983-6821. DOI: 10.1590/1983-682120169186. Available from: http://ref.scielo.org/6qc723
COSTA, A. M. M. Dualidade e ironia em Esaú e Jacó. Machado Assis Linha [online]. 2016, vol.9, n.18, pp.64-73. [viewed 28th October 2016]. ISSN 1983-6821. DOI: 10.1590/1983-682120169185. Available from: http://ref.scielo.org/p5bc5r
Link externo
Machado de Assis em Linha – MAEL: www.scielo.br/mael
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