Explosivo Quebra-Bondes contra empresas dos Estados Unidos radicalizou a Revolução de 30 em Salvador

Jonas Brito, Doutorando da Unicamp, Campinas, São Paulo, Brasil.

Figura 1: praça do Elevador Lacerda no dia seguinte ao Quebra Bondes. Fonte: Getty Images 515143184, adquirida em 26/4/2020.

No entardecer do dia 4 de outubro de 1930 na capital da Bahia, enquanto noutros estados ocorriam as rebeliões que resultariam na Revolução de 30, trabalhadores (em sua maioria negros) e um grupo de estudantes e jornalistas começaram um protesto contra a Linha Circular e Energia Elétrica, empresas estadunidenses que monopolizavam os serviços de transporte, eletricidade e telefone. Horas depois, o protesto espalhou-se pela cidade, destruindo bondes, aparelhos elétricos e telefônicos, estações e ascensores, incluindo o recém-inaugurado elevador Lacerda. Os manifestantes perseguiram o prefeito, chefe de polícia e pessoal estrangeiro das empresas, apedrejando a residência do cônsul dos Estados Unidos. Era uma manifestação contra a má qualidade e o alto preços dos serviços públicos. No relato do cônsul, o desemprego, salários atrasados e conflitos operários nas duas empresas seriam outras causas para o motim. Por suas dimensões, impacto na memória e concomitância com a Revolução, o Quebra Bondes foi um episódio importante da história social do período republicano.

Em busca de respostas sobre causas, natureza e desdobramentos do Quebra Bondes, os historiadores Antonio Luigi Negro (professor da UFBa) e Jonas Brito (doutorando pela Unicamp) analisaram fotos, jornais, além de correspondência e relatórios diplomáticos, custodiados na internet e em arquivos de Salvador, Washington D. C., Londres e Paris. O fechamento dos arquivos Municipal de Salvador e Público da Bahia impôs limites à pesquisa, que, não obstante, foi capaz de traçar um quadro do cotidiano e evolução dos serviços públicos no decorrer dos anos 20, chamando a atenção para os efeitos da crise global de 1929.

O artigo “Insurgentes incendeiam a cidade da Bahia. O Quebra Bondes e a Revolução de 30”, publicado pelo periódico Estudos Históricos (Rio de Janeiro) (vol. 33, no. 71), traz a lume detalhes pouco conhecidos e inspira perguntas sobre essa explosiva manifestação. De reclamações contra atrasos, acidentes, falhas e altos preços dos serviços públicos emerge uma percepção mais acurada das razões para insatisfação dos usuários, enquanto o olhar sobre o encadeamento dos fatos políticos na Bahia e outros estados dá pistas de como o descontentamento tornou-se protesto. Entender a dinâmica pela qual o desgosto popular acumula-se e conduz à ocupação do espaço público permanece um desafio para a contemporaneidade, quando protestos em grande escala ocorrem em meio às incertezas econômicas e políticas em países como Chile e Estados Unidos.

Um dos desafios da pesquisa foi deslindar como, entre 1926 e 1930, a continuidade e piora na precariedade dos serviços públicos combinaram-se com melhorias e encarecimentos, reforçando desigualdades raciais e de classe demarcadas pela geografia da capital. O caso mais eloquente foi a aquisição, no começo de 1928, de dois bondes para a Cidade Alta, o que implicou em aumentos nas tarifas de todos os ramais, agravando sobretudo os da Cidade Baixa, onde uma população operária e negra refugiava-se dos altos aluguéis do centro. O artigo apresenta a hipótese de que no Quebra Bondes, trabalhadores e usuários dos serviços públicos realizaram um protesto aproveitando-se de uma manifestação acadêmica simpática à Revolução. Daí o registro do cônsul estadunidense sobre o medo, nutrido pelas elites locais, do “bicho papão” da horda negra no pós-30. Como mostrou o historiador Luís Henrique Silva Sant’Ana, essa era uma ansiedade diante da capacidade de influência política dos operários de origem africana acossados pela carestia e pelo desemprego.

Uma contribuição central do artigo é questionar o estereótipo da Bahia como atrasada e marginal em relação à história do Brasil republicano, um estado em que as elites exerceriam pleno controle sobre a população. O Quebra Bondes ocorreu no dia seguinte ao começo da Revolução, para o qual teria sido marcado uma rebelião militar em Salvador contra o governo baiano, não ocorrida por razões logísticas. Outra contribuição é mostrar que o protesto conferiu aos acontecimentos em curso no país um caráter radical, pelos ataques à propriedade, autoridades e pela resistência contra a difícil situação social agravada pela crise. Quando a I República caiu em 24 de outubro de 1930, a população soteropolitana que ocupou as ruas em festas exigiu a anulação da alta dos preços das tarifas e a própria encampação da Elétrica e da Circular. No porto, cruzadores militares dos Estados Unidos, Grã-Bretanha e Alemanha garantiam a segurança da comunidade estrangeira.

Uma pesquisa de maior fôlego sobre o Quebra Bondes poderia analisar o apoio dado pela Aliança Liberal às reclamações contra a empresa durante a campanha eleitoral entre 1929 e 1930, o que ajudaria a entender a aliança que emerge no protesto entre acadêmicos aliancistas e usuários, trabalhadores etc. O nacionalismo que despontou no dia 4 era um elemento importante na propaganda dos candidatos oposicionistas. Para entender o papel desse nacionalismo, seria preciso não esquecer que os maiores empregadores de Salvador eram firmas estrangeiras, como a Circular e Elétrica, mas também as concessionárias francesas dos caminhos de ferro e do porto da Bahia. O período foi marcado por reclamações contra baixos salários e maus-tratos nessas empresas.

Referências

ALBUQUERQUE, W. Algazarra nas ruas. Comemorações da Independência na Bahia 1889–1923. Campinas: Editora Unicamp, 1999.

BARROS, F. À margem da história da Bahia. Salvador: Imprensa Oficial do Estado, 1934.

CUNHA. J. O fazer político da Bahia, 1904–1930. 2011. Tese “Doutorado em História” – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011.

FREITAS, A. Alcance e limites do Movimento Tenentista na Bahia. 2010.  Dissertação “Mestrado em História” – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2010.

GUIMARÃES, L. “Ideias perniciosas do anarquismo” na Bahia. Lutas e organização dos trabalhadores da construção civil (Salvador, 1919–1922). 2012. Dissertação “Mestrado em História” – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2012.

PRIMO, J. Tempos vermelhos: Aliança Nacional Libertadora e a política brasileira (1934–1937). Salvador: Editora Sagga, 2017.

SAMPAIO, C. N. Poder & Representação: o Legislativo da Bahia na Segunda República, 1930-1937. Salvador: Assembleia Legislativa da Bahia, 1992.

SANT’ANA, L. S. Os Olhares Diplomáticos Estadunidenses Sobre o Brasil em Tempo de Revolução (1930-1932). 2010. Dissertação “Mestrado em História” – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2010.

TAVARES, L. H. História da Bahia. São Paulo: Edusp, 2008.

Para ler os artigos, acesse

NEGRO, A; BRITO, J. Insurgentes incendeiam a cidade da Bahia. O Quebra Bondes e a Revolução de 30. Estud. hist. (Rio J.) [online]. 2020, vol. 33, no. 71, ISSN: 0103-2186 [viewed 03 December 2020]. https://doi.org/10.1590/s2178-14942020000300008. Available from: http://ref.scielo.org/b95mv9

Links Externos:

Antonio Luigi Negro: https://ppgh.ufba.br/antonio-luigi-negro

Revista Estudos Históricos:  http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh

Estudos Históricos (Rio de Janeiro) – EH: www.scielo.br/eh

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

BRITO, J. Explosivo Quebra-Bondes contra empresas dos Estados Unidos radicalizou a Revolução de 30 em Salvador [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2021 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2021/01/28/explosivo-quebra-bondes-contra-empresas-dos-estados-unidos-radicalizou-a-revolucao-de-30-em-salvador/

 

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