O pensamento vivo de Heleieth Saffioti

Ana Maria Veiga é professora do Departamento de História da Universidade Federal da Paraíba, editora da Sæculum – revista de História, editora de divulgação da Revista Estudos Feministas, João Pessoa, PB, Brasil

Vera Gasparetto é Pós-doutoranda em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina, pesquisadora do IEG/LEGH, jornalista e divulgadora da Revista Estudos Feministas, Florianópolis, SC, Brasil

A Revista Estudos Feministas (vol. 29, no. 1, 2021) reúne mais uma vez um denso material, do qual destacamos a Seção Temática “Heleieth Saffioti – 50 anos d’A mulher na sociedade de classes”, com reflexões sobre essa intelectual, socióloga e feminista brasileira, que viveu de 1932 a 2010.

“A força de Heleieth Saffioti 50 anos depois” é o título da apresentação escrita pelas organizadoras Deniele Cordeiro Motta e Elaine Mauricio Bezerra, e reflete o significado da socióloga para o campo das ciências sociais e dos estudos feministas e de gênero no Brasil, e para além de suas fronteiras.

A primeira obra de Heleieth Iara Bongiovani Saffioti é resultado de sua tese de doutorado, defendida em 1966, que virou livro em 1969, tornando-se um marco para as feministas de esquerda no Brasil, trazendo um olhar para as mulheres como sujeitas da história, articulando as inter-relações entre capitalismo, patriarcado e preconceito. A autora foi uma das primeiras intelectuais brasileiras a articular diferentes marcadores sociais de diferença, o que é discutido atualmente sob o conceito de interseccionalidade, um termo anacrônico ao período de escrita da obra.

Ao pensar essas três dimensões – gênero, raça e classe – seu argumento aborda as transformações na ordem patriarcal de gênero e sua intersecção histórica com o racismo e com o capitalismo. As estruturas patriarcais de poder são ambíguas e contaminam positivamente as instituições sociais e as condutas das pessoas, pois nelas circulam também as matrizes subversivas de gênero. Entretanto, é preciso destacar que existem espaços para o imponderável, possibilitando que muitas mulheres e homens transformem os destinos com os quais nasceram, de acordo com Saffioti (2003).

No entanto, o pertencimento a um sexo/gênero e a uma raça/etnia limita uma estrutura social, dependendo da sua condição, por exemplo, no mercado de trabalho. “Numa estrutura racista, sexista e classista, obviamente, as trabalhadoras não se constituem da mesma forma que os trabalhadores. Elas são sempre trabalhadoras mulheres brancas ou trabalhadoras mulheres negras ou de outra raça/etnia (SAFFIOTI, 2003, p.36)”.

Heleieth Saffioti é considerada um cânone do pensamento feminista no país, tendo influenciado várias gerações de pesquisadoras e de mulheres militantes, entre elas Maria Lígia Quartim de Moraes, Heloneida Studart e Albertina Costa.

Embora seja assim reconhecida, Heleieth demorou a se assumir como feminista, um termo aplicado às mulheres de forma pejorativa no momento da publicação do livro, e ainda hoje. “[…] eu tomei consciência que eu tinha que assumir, mesmo que eu tivesse que explicar em todos os lugares que o meu feminismo não tinha nada a ver com o feminismo radical americano, que queria uma sociedade só de mulheres” (SAFFIOTI, 2005).

Escrita em plena ditadura militar, a obra A mulher na sociedade de classes – mito e realidade é de extensa importância para se refletir sobre o papel das mulheres na sociedade brasileira. Outros livros da autora são O poder do macho (1987), que volta a ser debatido, desta vez entre as jovens feministas que configuram uma nova geração, e Gênero, patriarcado, violência (2004), que marca a reiteração argumentativa de um outra noção que vem do feminismo de esquerda inspirado por Heleieth Saffioti, a saber, o conceito de patriarcado.

Foto da capa da primeira edição do livro “A mulher na sociedade de classes”.

Com seu trabalho, a autora teve forte impacto na formulação de políticas públicas para os direitos das mulheres no Brasil, que tiveram maior relevo a partir da Constituição de 1988.

As autoras que assinam os artigos da seção temática utilizam-se do marco dos 50 anos da publicação e buscam um diálogo com um conjunto de intelectuais para femenagear Saffioti e atualizar a importância da sua contribuição, por meio dos seguintes artigos: “A Mulher na Sociedade de Classes: Inspirações e impactos internacionais”, de Nadya Araujo Guimarães e Helena Hirata; “A mulher na sociedade de classes: um clássico dos estudos de gênero”, escrito por Bila Sorj e Anna Bárbara Araújo; “Notas sobre a mulher na sociedade de classes”, de Carla Cristina Garcia, “A mulher na sociedade de classes: contribuições para uma historiografia feminista”, de Natalia Pietra Méndez; “Apontamentos materialistas à interseccionalidade”, de Ísis Dantas Menezes Zornoff Táboas; “Diálogos sobre a obra de Heleieth Saffioti e o feminismo de esquerda”, assinado por Maria Lucia Silveira e Tatau Godinho; e “Heleieth e as diferentes gerações de feministas do NEIM/UFBA”, escrito por duas gerações de pesquisadoras: Maíra Kubík Taveira Mano e Cecilia Maria Bacellar Sardenberg.

Adentrar a obra de Saffioti, por meio dos textos que a visitam, é conhecer uma parte incontornável da história dos feminismos no Brasil.

Referências

DA SILVEIRA, M.L. and GODINHO, T. Diálogos sobre a obra de Heleieth Saffioti e o feminismo de esquerda. Rev. Estud. Fem. [online].2021, vol. 29, no. 1, e76772 [viewed 3 September 2021]. https://doi.org/10.1590/1806-9584-2021v29n176772. Available from: https://www.scielo.br/j/ref/a/C9rThdhv4sbNDMqf7K5DFHh/?lang=pt

GARCIA, C.C. Notas sobre A mulher na sociedade de classes. Rev. Estud. Fem. [online].2021, vol. 29, no. 1, e76731 [viewed 3 September 2021]. https://doi.org/10.1590/1806-9584-2021v29n176731. Available from: https://www.scielo.br/j/ref/a/fxD5KFyC7JbTCnJsh8sCxqH/?lang=pt

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MANO, M.K.T. and SARDENBERG, C.M.B. Heleieth e as diferentes gerações de feministas do NEIM/UFBA. Rev. Estud. Fem. [online].2021, vol. 29, no. 1 [viewed 3 September 2021]. https://doi.org/10.1590/1806-9584-2021v29n172559. Available from: https://www.scielo.br/j/ref/a/wQHYKTkVzDQLByttwQHZmDc/?lang=pt

MÉNDEZ, N.P. A mulher na sociedade de classes: contribuições para uma historiografia feminista. Rev. Estud. Fem. [online].2021, vol. 29, no. 1, e76728 [viewed 3 September 2021]. https://doi.org/10.1590/1806-9584-2021v29n1767. Available from: https://www.scielo.br/j/ref/a/QXSVdNTM7Tg8jN9pgCwdDLd/?lang=pt

SAFFIOTI, H.I.B. A mulher na sociedade de classes:Mito e Realidade (2 ed). Petrópolis: Vozes, 1979.

SAFFIOTI, H.I.B. Entrevista concedida a Joana Maria Pedro. São Paulo (SP) em 2 de agosto de 2005. Acervo do LEGH/UFSC.

SAFFIOTI, H.I.B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Perseu Abramo, 2004.

SAFFIOTI, H.I.B. O poder do macho. São Paulo: Editora Moderna, 1987.

SAFFIOTI, H.I.B. Violência estrutural e de gênero – Mulher gosta de apanhar? In: SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES (ed.). Programa de Prevenção, Assistência e Combate à Violência Contra a Mulher – Plano Nacional: diálogos sobre violência doméstica e de gênero: construindo políticas públicas., Brasília: A Secretaria, 2003.

SORJ, B. and ARAUJO, A.B. A mulher na sociedade de classes: um clássico dos estudos de gênero. Rev. Estud. Fem. [online].2021, vol. 29, no. 1, e76729 [viewed 3 September 2021]. https://doi.org/10.1590/1806-9584-2021v29n176729. Available from: http://ref.scielo.org/w87hxs

TÁBOAS, I.S.M.Z. Apontamentos materialistas à interseccionalidade. Rev. Estud. Fem. [online].2021, vol. 29, no. 1, e76725 [viewed 3 September 2021]. https://doi.org/10.1590/1806-9584-2021v29n176725. Available from: https://www.scielo.br/j/ref/a/5v8j75N8f4J59SkxKwy4Qpf/?lang=pt

Para ler o artigo, acesse

MOTTA, D.C. and BEZERRA, E.M. A força de Heleieth Saffioti 50 anos depois. Rev. Estud. Fem. [online].2021, vol. 29, no. 1, e76777 [viewed 3 September 2021]. https://doi.org/10.1590/1806-9584-2021v29n176777. Available from: http://ref.scielo.org/6wrhdr

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