Eduardo Rocha, jornalista, Belém, Pará, Brasil.
Nas trilhas deixadas pelo etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg, em diálogo com a contribuição científica de Emílio Goeldi e Curt Nimuendaju, pesquisadores apresentam trabalhos sobre a cultura e história dos povos originários da região amazônica em um dossiê de duas partes publicado pelo Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas. A primeira delas, intitulada Temporalidades e interações socioambientais no noroeste amazônico já está disponível e a segunda está programada para ser publicada no último quadrimestre deste ano. Este compêndio in memoriam de Sueg–u Dagoberto Lima Azevedo e Ahk–uto Gabriel Sodré Maia inclui vinte artigos inéditos, resultantes de pesquisas realizadas na última década na região do noroeste amazônico, sob olhares diferenciados da etnologia indígena, antropologia e história, cruzando fronteiras entre as disciplinas.
A capa do primeiro número de 2024 chega ao público com uma capa esteticamente atraente e representativa da vida das populações originárias que habitam porção mais a oeste da Amazônia (ver figura 1). Trata-se de um mapa de igarapés elaborado por representantes das etnias yuremawa, yúriwawa e betówa, apresentando em detalhe os cursos d’água, com os nomes na língua do povo Kubeo. Isso porque, para se ver no contexto dos sentidos das nomenclaturas, da flora e da fauna e do imaginário desses povos, é preciso mergulhar no imaginário dos povos originários da Amazônia.
Esse mergulho foi dado pelo etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg há 120 anos, em expedição pioneira no noroeste da região, em diálogo com o também pesquisador Emílio Goeldi, responsável pela criação e publicação do Boletim, cuja primeira edição data de 1894. Com 130 anos de existência, o Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi é um dos mais antigos periódicos da América Latina em circulação.
Conforme destacam seus organizadores – os pesquisadores Geraldo Andrello e Pedro Lolli, da Universidade Federal de São Carlos (SP), e Márcio Meira, do Museu Goeldi (PA) – o foco do dossiê está voltado aos aspectos variados da constituição da extensa rede social indígena do noroeste amazônico, em uma imersão que envolve indígenas e não indígenas da região, bem como os impactos e as influências decorrentes do processo colonial ali iniciado no século XVII.
Essa publicação celebra “os 120 anos da expedição do etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg pela região do noroeste amazônico, cuja realização se deu sob forte influência do então diretor do Museu Paraense, o suíço Emílio Goeldi”. Em outubro de 2024, também se celebra o centenário da morte de Koch-Grünberg.
Figura 1. Detalhe de mapa de igarapés com nomes em Kubeo, elaborado por representantes das etnias yuremawa, yúriwawa e betówa.
Rumos
Segundo Andrello, Lolli e Meira, no começo do ano de 1903, Koch-Grünberg, então pesquisador do Real Museu de Etnologia de Berlin, iniciava sua permanência no rio Negro pelos dois anos seguintes. No preâmbulo ao livro publicado com os resultados de suas pioneiras investigações etnológicas (Koch-Grünberg, 1995 [1909-1910], p. 35, 2005 [1909-1910], p. 7), afirmava que havia “escolhi[do] o noroeste do Brasil, na fronteira com a Colômbia e Venezuela, por apresentar problemas importantes e interessantes, do ponto de vista geográfico e etnográfico”.
Nos dois números do dossiê, o público vai poder conferir boa parte das localidades em que o etnólogo alemão foi recebido por vários dos povos Tukano, Arawak e Naduhup ao longo dos rios Negro, Içana, Aiari, Uaupés, Tiquié, Cuduiari, Pirá-Paraná e Apapóris.
Pioneirismo
Acerca da importância decisiva da pesquisa científica sobre povos indígenas para a coexistência desses próprios grupos com os chamados homens brancos, Márcio ressalta que as pesquisas antropológicas têm como pressuposto fundamental o respeito à diversidade dos povos e de suas culturas. Os organizadores afirmam em entrevista que, “Nesse sentido, o conhecimento que é produzido pelos antropólogos é valioso para a garantia dos direitos dos povos indígenas, inclusive territoriais, diante dos desafios e da violência do chamado ‘mundo dos brancos’. Nos dias de hoje, os próprios indígenas têm se tornado antropólogos, ocupando espaços nas universidades e trazendo novos olhares e contribuições críticas para o conhecimento antropológico. Com esses avanços, oxalá o ensino de história e cultura indígenas, garantido pela Lei 11.645, venha a despertar entre os jovens de todo o Brasil um maior conhecimento da riqueza das culturas indígenas e de seu imenso patrimônio, que, em muitos casos, é compartilhado por toda a população do Brasil, e que nem sempre é reconhecido”, completa o pesquisador.
Rede
A rede social dos povos indígenas da região tem sido estratégica para a perpetuação da identidade das etnias, ao possibilitar, entre eles próprios, a troca de bens materiais e imateriais (inclusive, narrativas míticas), entre outras referências sociais. Essa rede desafia pesquisadores indígenas e não indígenas, dada a sua complexidade e as mutações sofridas e em andamento em sua trajetória, com seus respectivos formatos e significados, no sentido de garantir a (re)existência desses grupos sociais originários do país.
Resistência
Sobre essa rede preciosa no noroeste amazônico, os pesquisadores Andrello, Lolli e Meira observam: “Desde os trabalhos pioneiros de T. Koch-Grunberg e Curt Nimuendaju, sabemos que a região do noroeste amazônico abriga um extenso complexo de povos indígenas, classificados em três famílias linguísticas, possivelmente distribuídos em mais de 300 comunidades ribeirinhas e interfluviais localizadas na bacia dos formadores do rio Negro (Uaupés, Içana, Xié e outros). Trata-se talvez do mais conhecido ‘sistema regional’ na Amazônia indígena. A complexidade das relações entre os diferentes povos que participam dessa extensa rede expressa-se em vários níveis, do plano da organização e das trocas sociais (mais de 20 povos inter-relacionados por exogamia de clãs e línguas) a uma intrincada mitocosmologia elaborada em um sem-número de versões. Esses planos implicam-se mutuamente, de modo que – e isto é um dos pontos que mais me chama a atenção nessa região – é impossível tratar-se exaustivamente desses temas de modo isolado”.
Impactos
Acerca dos conteúdos publicados no dossiê, Pedro Lolli destaca que os artigos reunidos no periódico expressam também um conjunto de pesquisas que se fundamentam em um trabalho colaborativo entre pesquisadores(as) brancos(as), sábios(as) indígenas e pesquisadores(as) indígenas e que vem trazendo importantes compreensões sobre o processo colonial que ocorreu na Amazônia. Uma das contribuições desses trabalhos é que o processo colonial na região não pode ser compreendido apenas numa chave histórica e que devemos levar em consideração as várias historicidades indígenas que se entrecruzam no processo histórico colonial. Não é mais possível pensarmos sobre os rumos da Amazônia sem levar em consideração essa diversidade de historicidades, que implica também em trazer para o centro da discussão os (as) próprios (as) indígenas.
Para ler a apresentação do dossiê, acesse
ANDRELLO, G., LOLLI, P., and MEIRA, M. Temporalidades e interações socioambientais no noroeste amazônico: apresentação ao dossiê. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi Ciênc. hum. [online]. 2024, vol. 19, no. 1, e20230025 [viewed 29 May 2024]. https://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2023-0025. Available from: https://www.scielo.br/j/bgoeldi/a/gCtxYVbzFG7txTprLMtfWFN/
Links externos
Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas – SciELO: https://www.scielo.br/j/bgoeldi/
Para download gratuito da edição, acesse: http://editora.museu-goeldi.br/humanas/
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