A memória como o ato de lembrar pode gerar novo conhecimento

Tiegue Vieira Rodrigues, Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria, RS-Brasil.

Logo do periódico TransformaçãoQual é o verdadeiro papel da memória na nossa vida intelectual? A visão ortodoxa, conhecida como preservacionismo epistêmico, nos diz que a memória funciona como um guardião: ela preserva a justificação de crenças que adquirimos por outras vias, como a percepção, mas não cria nada novo. Se uma crença era justificada quando foi formada, a memória a mantém assim; se não era, a memória não pode consertá-la.

O artigo Geração Epistêmica de Memória como Resposta ao Dilema Preservacionista publicado no periódico Trans/Form/Ação (vol. 48, no. 6, 2025), contesta essa imagem passiva e argumenta a favor de uma visão mais dinâmica: o geracionismo epistêmico. O ponto de partida é o influente experimento mental do “Motorista Desatento”, proposto por Jennifer Lackey. Nele, um motorista registra visualmente uma obra na estrada, mas, por estar distraído, não chega a formar a crença sobre isso. Mais tarde, ao ser questionado, ele recupera essa informação e, pela primeira vez, forma a crença justificada de que havia uma obra na estrada.

Esse caso cria um dilema para a teoria tradicional. De onde vem a justificação para a crença do motorista? Se a justificação precisa estar atrelada a uma crença anterior, e não havia uma, a teoria entra em contradição lógica. Se, por outro lado, postula-se que o motorista já tinha uma crença inconsciente sobre cada detalhe que viu, cai-se em uma posição psicologicamente implausível.

 

 

A solução defendida no artigo é que a percepção pode registrar informações de modo inconsciente, que permanecem em um estado “epistemicamente neutro”. Esse conteúdo não é uma crença e, portanto, não é nem justificado nem injustificado. É aqui que a memória revela seu poder gerador. Ao recuperar esse conteúdo neutro e convertê-lo em uma crença proposicional (“havia uma obra na estrada”), a memória realiza um trabalho epistêmico ativo.

A justificação da nova crença não vem da percepção original, mas da confiabilidade de toda a cadeia de processos: registro perceptual acurado, armazenamento fiel e, crucialmente, a recuperação precisa que transforma informação em crença. O artigo fortalece essa tese ao propor um mecanismo de “endosso” que filtra a qualidade da informação perceptual antes mesmo de ela ser armazenada, garantindo que a memória trabalhe com material de boa qualidade.

Dessa forma, a memória é elevada de um mero arquivo a uma fonte epistêmica básica e geradora, redefinindo sua importância na arquitetura do conhecimento humano.

Para ler o artigo, acesse

RODRIGUES, T. V. Geração Epistêmica de Memória como Resposta ao Dilema Preservacionista. Trans/Form/Ação, [online]. 2025, v. 48, n. 6, e025147 [viewed 22 October 2025]. https://doi.org/10.1590/0101-3173.2025.v48.n6.e025147. Available from:  https://www.scielo.br/j/trans/a/DMx5tTPLYC7g7BxQ8J4ySbF/

Links externos

Centre for Philosophy of Memory

Trans/Form/Ação – TRANS

Revista Trans/Form/Ação: Instagram | Facebook | Academia.edu

 

Sobre Tiegue Vieira Rodrigues

É professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Realizou pesquisa de estágio pós-doutoral na Universität Zu Köln (2022-2023), com financiamento da CAPES e supervisão de Sven Bernecker.

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

RODRIGUES, T. V. A memória como o ato de lembrar pode gerar novo conhecimento [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2025 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2025/10/22/a-memoria-como-o-ato-de-lembrar-pode-gerar-novo-conhecimento/

 

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