Laeticia Jensen Eble, doutora em Literatura pela Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF, Brasil
No atual momento histórico, as discussões emergentes no campo da crítica acadêmica não apenas delineiam os territórios da pesquisa, como também assumem posições teóricas e políticas, sobretudo quando se trata de participar dos debates sobre problemas que insistem em assombrar as sociedades contemporâneas, como violência, autoritarismo, segregações, desigualdades e injustiças de toda ordem.
Em sua dimensão ética – e, portanto, política – a literatura demanda um olhar para fora, além de si, fazendo perceber as divisões e as posições sociais, em meio às quais ela própria se estabelece. O debate envolvendo literatura e ética aprofunda-se na medida da indagação sobre o lugar e as funções do literário no contexto contemporâneo, aspecto que cabe à crítica problematizar. Nesse sentido, o presente número do periódico Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea convida os leitores a refletir sobre o tema “Literatura e ética”.
As indagações propostas nos artigos apresentados neste número da ELBC articulam uma série de abordagens sobre o tema da ética, no âmago do fazer literário de diferentes autores e autoras da literatura brasileira contemporânea, não excluindo o diálogo com vozes de outros tempos e lugares.
Entre os artigos dessa coletânea, destacamos “A (po)ética de Carolina Maria de Jesus e o direito à escritura”, de Luana Barossi, em que a questão ética é abordada a partir de questionamentos sobre o direito de narrar dos sujeitos subalternos, em contraponto ao silêncio e às narrativas dominantes que falam pelo outro, sob o ponto de vista do discurso colonial. Ao trazer um questionamento à história oficial e constituir a memória e a criação poética como reescritas dessas histórias obliteradas, a noção de escrevivência (EVARISTO, 2008) age como instância ética, estética e poética, pois dá vazão à mudança de perspectiva por meio do processo criativo.
Em uma leitura inovadora, Luciano Barbosa Justino, no artigo “A hora da estrela: por uma leitura nordestina”, propõe que questionamento ético começa por desconstruir os lugares sagrados da literatura e da crítica canônicas. Trata-se de colocar sob suspeita os processos de semiotização da realidade, que reduzem o outro a uma representação homogeneizante, interpretada em termos imanentes.
As questões éticas também estão no centro da trama do romance Divórcio, de Ricardo Lísias, analisadas no artigo “Discutindo Divórcio entre literatura, jornalismo e ética: um caso não só literário”, de autoria de Antonio Hohlfeldt, Ana Cláudia Munari Domingos e Taíssi Alessandra Cardoso da Silva. O artigo explicita as articulações da ficção com os problemas éticos envolvidos na conduta dos jornalistas, tomando como referenciais o caso Watergate, nos Estados Unidos, e o caso Collor de Mello, no Brasil.
Entender a literatura como um direito, conforme propõe Antonio Candido (1995), não deveria se transformar em um “imperativo categórico”, sem antes indagarmos em nome de que ordem de divisões tal direito se institui.
As formas de expressão da subjetividade e da experiência, que Jacques Rancière (2009) situa no campo da produção sensível, estão submetidas a hierarquias e a um regime de “partilha”, que tanto significa participação comum como divisão dos modos do fazer e do dizer.
Comemora-se, portanto, que, nas últimas duas décadas, tenha aumentado a visibilidade da representação negra na sociedade brasileira – seja nos meios de comunicação de massa, seja nas artes, na música e na literatura, seja no campo acadêmico – e seu caráter “marginal” diante das formas de expressão dominantes vem sendo fortemente questionado.
Nesse sentido, este número da Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea traz também um dossiê de entrevistas com autores/as negros/as da atualidade que falam de temas fundamentais do mundo contemporâneo que os afetam diretamente, tais como o racismo e os problemas relacionados à produção e recepção dessa produção de autoria negra.
Em sua maior parte, as entrevistas foram colhidas durante a realização da III Jornada Literária de Autoria Negra: Percursos Contemporâneos, promovida na Universidade de Brasília, no dia 1º de junho de 2016, pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea. Estão presentes nesse conjunto de entrevistas: Cristiane Sobral, Cuti, Dinha, Eliane Marques, Mel Adún, Esmeralda Ribeiro, Miriam Alves, Ronald Augusto, Lívia Natália, Ricardo Aleixo e Ana Maria Gonçalves.
São registros do que inspira e motiva esses autores e autoras a escrever, do que os inquieta e desperta para o texto literário, mas são, acima de tudo, a sua visão de mundo, tão indispensável a todos e a todas que pretendem compreender e apreciar melhor a produção literária brasileira contemporânea.
Em sua fala, a escritora Cristiane Sobral (FREDERICO; MOLLO; DUTRA, 2017, p. 256) sintetiza o que essa produção literária representa: “Creio na estética literária afro-brasileira como um discurso consciente, um manifesto de sobrevivência e resistência do povo negro. Seria uma estética do discurso. Além do panfleto, essa linguagem tem um compromisso com o leitor, com os afetos, deseja afetar e ser afetada, é humanista por excelência”.
Referências
CANDIDO, A. Direito à literatura. In: CANDIDO, Antonio. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995.
EVARISTO, C. Escrevivências da afro-brasilidade: história e memória. Releitura, Belo Horizonte, n. 23, 2008.
RANCIÈRE, J. A partilha do sensível. São Paulo: Ed. 34, 2009.
Para ler os artigos, acesse
Estud. Lit. Bras. Contemp. no.51 Brasília mai./ago. 2017
Links externos
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea – www.gelbc.com
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