Uma reinterpretação da Guerra do Paraguai a partir do conceito de região-mundo

Felipe Muniz Vilas Boas, graduando de História, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.

Logo do periódico Varia HistóriaO conflito armado tem, por sua própria natureza, um potencial transformador único. Foi-se o tempo em que o ofício guerreiro era prerrogativa de uma reduzida casta de aristocratas encouraçados. Desde o século XVIII, com o advento da Revolução Francesa e a invenção do levée en masse (mobilização em massa) como tática de recrutamento, o conflito militar passou a afetar todos os campos de existência da sociedade humana. Agora, mais do que nunca, Estados eram feitos e desfeitos pelos resultados de um campo de batalha, e a guerra, como outrora propôs Carl von Clausewitz (2017), reafirmava-se como a continuação da política por outros meios.

A Guerra do Paraguai é desses eventos transformadores da vida política dos Estados. As interpretações historiográficas sobre esse conflito não puderam deixar de ser atravessadas pelas dinâmicas do nacionalismo do final do século XIX e do princípio do século XX. Indicativo disso é o fato de que o embate assumiu nomes diferentes em cada um dos países que dele participaram – Guerra do Paraguai, no Brasil; Guerra da Tríplice Aliança, na Argentina e no Uruguai; Guerra Grande, no Paraguai.

No imaginário social brasileiro, tal guerra é um acontecimento de grande relevância. Em uma nação onde as Forças Armadas passariam, a partir do século XX, a gozar de grande influência política, a Guerra do Paraguai talvez se apresente como o embrião originário dessa ascendência, já que acabou por acarretar na profissionalização do corpo militar brasileiro.

Dessa forma, o trabalho de memória sobre participação brasileira na refrega nos charcos paraguaios, feito principalmente pela corporação militar, foi responsável por formar heróis: o pacificador Caxias, o valente Osório, o íntegro Deodoro da Fonseca. Também criou sua cota de vilões – o tresloucado Solano López, que jogou fora a estabilidade da região platina por um delírio de grandiloquência, é o mais evidente. Em que pese isso, do ponto de vista das relações internacionais, a Guerra do Paraguai também teve consequências marcantes: ao envolver quase todos os países da região platina, estruturou um sistema internacional que conserva sua materialidade até a contemporaneidade.

É compreensível o destaque que esse evento possui na historiografia militar brasileira. Entre narrativas apologéticas e críticas, o que interessa é que existe um desejo muito grande em compreender esse conflito. Em um contexto contemporâneo de recrudescimento das narrativas nacionalistas, revisitar a Guerra do Paraguai a partir de uma perspectiva transfronteiriça é importante para a adequada compreensão dos embates ideológicos atuais.

 

Figura 1: Mapa do complexo fluvial da bacia do Prata. Shared Use of Transboundary water resources in La Plata River Basin, 2017, p. 270. Veiculada por Rodrigo Goyena Soares 

 

Talvez seja a ciência dessa demanda que levou Rodrigo Goyena Soares, professor de História do Brasil na Universidade de São Paulo, a escrever o artigo A Guerra de Sessenta Anos: A região-mundo platina e as causas do conflito de 1864, publicado no periódico Varia Historia (vol. 40, 2024). Nele, Soares se dedica a propor um novo enquadramento teórico-metodológico para compreender os motivos causadores da Guerra do Paraguai – tratada nesse texto, doravante, como Guerra de 1864, seguindo a nomenclatura do autor.

A Guerra de 1864, para Soares, não teria sido motivada por um colapso do sistema de alianças que envolvia a bacia platina, perspectiva atualmente favorecida pela maior parte da historiografia brasileira, como observável na obra seminal de Francisco Doratioto (Maldita Guerra, 2007). Antes disso, teria sido sobretudo uma consequência da inserção de demandas do passado dos Estados dessa região na reorientação de seus interesses nacionais. Essa reinterpretação das causas do conflito, entretanto, só pode se dar a partir do reenquadramento teórico do Prata como uma região-mundo.

O conceito de região-mundo é muito inspirado pela perspectiva braudeliana de economia-mundo. Grosso modo, faz referência a um microcosmo de interações que se perpetuam de forma mais ou menos estável ao longo de determinada espacialidade, conectando as partes de uma região específica de maneira incontornável. A região-mundo, por mais que conte com o elemento propriamente geográfico da espacialidade, é também dependente do tempo, pois somente a partir da sua inserção no fluxo temporal que a constância e recorrência de suas relações podem ser identificadas.

Dessa forma, a bacia do Prata, para o autor, deve ser entendida como uma região-mundo determinada por uma extensa rede hidrográfica na qual se associam dois tempos diferentes. O primeiro se constitui na primeira metade do século XIX. Corresponde ao momento de formação dos Estados nacionais que ocupam o Prata; diz respeito, consequentemente, aos sucessivos conflitos ocorridos entre essas unidades territoriais em busca de soberania na região – a Guerra da Cisplatina (1825-1828), a Guerra contra Oribe e Rosas (1851-1852), a Guerra Civil do Uruguai (1839-1851) e inúmeras outras escaramuças nas quais homens morreram pela conquista de um palmo de terra. Esses embates tiveram como resultado principal a conformação de uma nova ordem internacional, caracterizada pela hegemonia brasileira na bacia do Prata.

O segundo estrato de tempo, por sua vez, desdobra-se da segunda metade dos Oitocentos até 1870. A região-mundo agora seria formada por Estados nacionais consolidados, os quais reorientaram seus interesses tendo em vista as preocupações históricas surgidas no primeiro estrato. Aparecem, dessa maneira, ameaças à ordem unipolar brasileira, que implicam na ocorrência da Guerra de 1864. Dentro desse novo paradigma, tal conflito passa a ser entendido como o último capítulo de uma longa sequência de embates que se iniciam ainda no princípio do século XIX, e que podem ser entendidos como fases distintas de uma mesma guerra – a Guerra dos Sessenta Anos.

Talvez essa seja a principal contribuição do artigo para a cena historiográfica. O autor não se propõe a revisar as causas da Guerra de 1864 a partir da reinterpretação de documentação primária, por exemplo. Ao contrário, dedica-se a oferecer um robusto arcabouço teórico para que, a partir daí, novas pesquisas sobre o tema sejam promovidas, enfatizando aspectos outrora deixados de lado ou minimizados.

Ao propor entender o Prata como uma região-mundo e a Guerra de 1864 como só mais um capítulo de um longo histórico de conflitividade entre os Estados-nação sul-americanos, Soares promove um deslocamento em direção aos princípios de um fazer historiográfico pautado na ênfase em conexões transfronteiriças; construindo, nesse sentido, uma história global por excelência. Desconstrói e se insurge contra, doravante, as narrativas heroicizantes ou detratoras acerca desse conflito.

Para ler o artigo, acesse

GOYENA SOARES, R. A Guerra de Sessenta Anos: A região-mundo platina e as causas do conflito de 1864. Varia Historia [online]. 2024, v. 40, e24018 [viewed 04 December 2025]. https://doi.org/10.1590/0104-87752024v40e24018. Available from: https://www.scielo.br/j/vh/a/n8jxQVZZr8b3kPY3Q5ydFzS/

Referências

CLAUSEWITZ, C.V. Da Guerra. São Paulo: WMF; Martins Fontes, 2017.

DORATIOTO, F. Maldita guerra: Nova história da Guerra do Paraguai. 2. ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

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Como citar este post [ISO 690/2010]:

BOAS, F.M.V. Uma reinterpretação da Guerra do Paraguai a partir do conceito de região-mundo [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2025 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2025/12/04/uma-reinterpretacao-da-guerra-do-paraguai-a-partir-do-conceito-de-regiao-mundo/

 

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