Por Fábio Duarte (editor-adjunto, urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana)
Nikos Salíngaros é professor no Departamento de Matemática da Universidade do Texas, em Santo Antonio. Apesar de ter iniciado sua carreira com pesquisas em física teórica e teoria do campo, publicadas em revistas como Physics Letters e Plasma Physics and Controlled Fusion, ele tornou-se conhecido pela contribuição aos estudos urbanos. Planetizen, um website bastante conhecido na área de arquitetura e planejamento urbano, considerou Salíngaros um dos 100 mais destacados pensadores urbanos e ele tem colaborado com arquitetos internacionalmente reconhecidos, como Christopher Alexander e Andres Duany. Em 2006, Salíngaros publicou Uma teoria da arquitetura, prefaciado pelo Príncipe Charles. Entre 2010 e 2011, a urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana publicou “Habitação socialmente organizada, uma nova abordagem à estrutura urbana”, em três edições.
Em seus primeiros textos sobre arquitetura e cidades, Salíngaros preocupava-se mais com os aspectos formais, sempre criticando o que ele considera uma complexidade artificial, que não levava em consideração algumas lógicas atávicas de como as pessoas se apropriam dos espaços e se afeiçoam aos mesmo. Aos poucos, seus textos ganharam um tom mais crítico e sobre aspectos sociais da arquitetura e das cidades, criticando um excesso de formalismo que se esquecia dos usuários, dos habitantes das cidades.
Salíngaros concedeu a Fábio Duarte, editor-adjunto da urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, entrevista que segue.
Nela, Salíngaros aborda como passou de trabalhos sobre matemática para os estudos urbanos, faz uma crítica dura de correntes filosóficas que influenciaram arquitetos nos anos 1990, comenta o urbanismo aberto (P2P) com participação plena de todos os envolvidos e faz uma crítica ao que o Brasil vem fazendo com suas cidades – mesmo sendo por vezes difícil de ouvir isto de alguém que nunca visitou o país, é inegável que estamos fazendo mal, muito mal, o que deveríamos fazer para as cidades brasileiras. As posições de Salíngaros, tanto em seus textos quanto na entrevista que segue, são por vezes duras, sem “papas na língua”. Pode-se discordar de suas posições, mas elas têm a força de nos chamar para a reflexão e para o debate de ideias.
1. Você tem um doutorado em física teórica e seus primeiros trabalhos tratavam de física matemática e teoria dos campos. Quando e por que seu interesse se voltou para o projeto urbano e arquitetura? Houve algum fato determinante?
Eu li os trabalhos de Christopher Alexander e depois nos tornamos amigos. Minha intuição de que a arquitetura contemporânea estava completamente errada, que estava criando ambientes inumanos que destruíam nossas sensibilidades e destruíam a própria terra, se confirmou com este encontro com Alexander. Depois, o trabalho que fizemos juntos na edição de seu livro A natureza da ordem levou-me cada vez mais para a arquitetura; foi quando comecei a escrever artigos sobre arquitetura e a estrutura das cidades. Uma vez que comecei essas investigações, percebi que minha formação e experiência científica eram perfeitas para desenvolver uma teoria genuína da arquitetura e urbanismo, uma vez que nada parecido existia, com exceção do trabalho de Alexander. Descobri uma disciplina que tinha sido devastada desde seu próprio interior, despojado de sua base intelectual por razões de ideologia e poder, deixando, assim, um vácuo intelectual que eu poderia ajudar a preencher.
2. Seus primeiros dois livros, Princípios da arquitetura urbana e Uma teoria da arquitetura tinham a intenção de entender a cidade e a arquitetura baseados em conceitos de redes, fractais, complexidade e adaptação, conceitos principalmente desenvolvidos pela física e pela matemática. Seu terceiro livro, no entanto, é quase um manifesto contra outro conceito contemporâneo: desconstrutivismo, desenvolvido principalmente por filósofos e linguistas. O que havia de errado com esta abordagem da arquitetura? E por que você acha que os arquitetos (incluindo aqueles que se destacaram entre o final dos anos 1990 e começo dos anos 2000) ficaram mais fascinados com desconstrutivismo do que com teoria da complexidade ou fractais?
Este é um ponto importante. Depois de ter publicado diretrizes e explicações sobre como construir edifícios e partes da cidade que podem ser maravilhosamente humanos, percebi que os resultados aos quais cheguei eram ou ignorados ou atacados pelo establishment da arquitetura. Essa atitude me surpreendeu, pois isto pareceu uma reação anticientífica e anti-intelectual, algo como uma reação desesperada para proteger uma estrutura de poder cultuada. Então comecei a investigar exatamente quais soluções de projeto estavam sendo promovidas e vi, para meu horror, que tais soluções eram destrutivas para a humanidade e para as estruturas vivas. Uma disciplina inteira, com apoio financeiro, postos em universidades, prêmios de prestígio e, com frequência, políticos corruptos, estava à mercê de charlatães perigosos.
Mas essas pessoas, vendendo com entusiasmo ideias anti-humanas, tinham seus projetos financiados por clientes e agraciados pela mídia. Eu me choquei com isto! Então investi parte de meu precioso tempo de pesquisa para expor essa fraude e alertar a todos sobre os perigos de permitir que tais pessoas projetassem nosso mundo. Para mim, a abordagem desconstrutivista do projeto só pode ter como resultado um prejuízo irremediável para a terra. A questão de por que pessoas inteligentes abusariam da geometria para criar formas mortas e ameaçadoras que geravam ansiedade nas pessoas tornou-se um desafio para mim. Eu queria chegar ao fundo dessa motivação, entender não a arquitetura (que era disfuncional), mas o impulso sociológico por trás desse movimento. Foi uma tarefa nada prazerosa a de testemunhar que a desordem está sendo deliberadamente imposta à humanidade e à natureza com o único fim de satisfazer egos e a luxúria do dinheiro e do poder. Esta é a mensagem negra de meu livro sobre a desconstrução
3. Você se tornou profundamente ligado ao “novo urbanismo”, que defende um respeito profundo às formas urbanas tradicionais – embora alguns de seus projetos, simplesmente, repliquem velhas formas urbanas –, o que Richard Sennett critica como sendo um retrocesso na criatividade da arquitetura. Quais você considera as principais ideias que devemos reter do novo urbanismo e como isto está ligado às suas próprias ideias de cidade como um sistema complexo e às formas urbanas adaptáveis?
A ideia básica do novo urbanismo é que o urbanismo tradicional funciona perfeitamente bem e que nós deveríamos, ao contrário, nos desfazer das noções urbanas disfuncionais da geração da Bauhaus. Princípios modernistas de projeto não funcionam. Eles foram repetidamente construídos, tentaram construí-los pelo mundo todo e sempre falharam em prover ambientes para a vida humana. (O arquiteto, a empresa de engenharia, a construtora, o banco e os governos, no entanto, ganharam bastante dinheiro.) É verdade que entre os vários projetos do novo urbanismo, alguns são melhores que outros, mas a motivação básica é válida. Minhas próprias ideias, e também as de Christopher Alexander, vão muito além das tipologias do novo urbanismo, principalmente por sabermos como adaptar o tecido urbano à vida humana, em vez de simplesmente usar velhas (embora válidas) tipologias. Eu gosto de ler Richard Sennett sobre a importância da habilidade manual e da cultura material compartilhada, mas não levo a sério sua crítica ao novo urbanismo porque ele vê tudo pela perspectiva ideológica marxista. Isto é bom para ele, mas não contribui para uma análise científica do que seja bom ou mau urbanismo. Uma das principais falhas do marxismo (e isto não tem a ver com Sennett) é sua insistência na engenharia social; a ideia maluca de que o progresso humano se baseia na erradicação do passado. Essa noção destrutiva nega a evolução humana e a biologia, e não é científica, contrária ao que marxistas gostam de acreditar ser próprio de sua própria ideologia. Mais importante, a rejeição do passado não ajuda em nada para melhorar o ambiente da vida das pessoas pobres, que são indefesas contra a imposição de monstros distópicos no ambiente construído no qual são forçados a viver. Rejeitando a escala humana tradicional em assentamentos urbanos, apenas leva a projetos totalitários. Eu trabalho com a esquerda política projetando habitações sociais, enquanto arquitetos marxistas prestigiados se aproveitam de uma relação próxima com o imperialismo global – afinal, esses dois grupos enxergam as pessoas como meros números para serem encaixados em blocos gigantes. Isto é tanto inumano quanto antiético, mas é muito difícil lutar contra isto.
4. Você contribui ativamente com o P2P urbanismo, que defende “o direito humano fundamental de escolher o ambiente construído no qual viver”; por outro lado, você criticou o “projeto urbanístico” por ser matematicamente aleatório e, consequentemente, antiurbano. Você poderia apontar a importância do “P2P urbanismo”? E quais os principais problemas para as pessoas do “projeto urbanístico”?
O P2P urbanismo (para peer-to-peer, ou por pares) aproxima algumas noções básicas do compartilhamento para criar o ambiente construído. Primeiro, é o conhecimento compartilhado do que uma sociedade precisa para melhorar sua qualidade de vida no que se refere ao ambiente construído: ninguém é mais bem informado sobre essas necessidades do que as próprias pessoas. Certamente, não alguns arquitetos arrogantes que foram ensinados a construir objetos de arte da moda! Assim, o papel do arquiteto é o de ajudar a implementar as ideias dos próprios moradores no que se refere às formas, caminhos, espaços abertos etc. Segundo, a noção de que as ferramentas de projeto são compartilhados, não são um domínio secreto exclusivo de alguns arquitetos ungidos, vindos de uma escola de arquitetura (onde são invariavelmente treinados para projetar formas inúteis e disfuncionais, apenas por diversão, e produzir um impacto visual).
Meu grupo de amigos publica técnicas de projeto abertamente na Internet, e qualquer um pode usar para construir sua própria casa ou comunidade. Não há necessidade de um arquiteto e, definitivamente, não há necessidade de importar ideias bobas da corrente arquitetônica da moda. Esta noção de compartilhamento torna-se incrivelmente clara no projeto de espaços urbanos públicos. Aqui reside o coração de qualquer região urbana. Assentamentos autoconstruídos e tradicionais dão muita atenção à praça central, à qual todos os residentes têm acesso. Desde as Leis das Índias (escritas pelo rei da Espanha, mas baseadas em protótipos há muito desenvolvidos, desse modo em concordância com P2P!) a praça central, circundada por prédios importantes, define o principal foco da ocupação. Compare centenas de espaços urbanos históricos e vernaculares bem-sucedidos, com os espaços urbanos equivalentes da ideologia modernista: é totalmente inútil. Ninguém nunca usa esses espaços, pois são resíduos dos “objetos” construídos e são hostis à psicologia humana. E a razão disto é que os ideólogos modernistas inverteram as regras geométricas do desenho, criando, assim, algo sem vida e repelente. Espaços urbanos modernistas juntaram lixo e dejetos de cachorro, mas a ordem arquitetônica vigente, o establishment, está extasiada pelas suas geometrias “puras”. Júris de concursos de projeto continuam a escolher a garantia dos parques urbanos sem vida.
5. Alguns de seus livros, e vários de seus artigos, foram publicados em português, principalmente, no Brasil. Qual sua impressão das cidades brasileiras?
Como ainda não tive a oportunidade de visitar o Brasil, não posso responder esta pergunta. Pelo que vi em fotografias e filmes (e adoro o cinema brasileiro), existe uma riqueza de urbanismo na escala humana que pode ser usada como uma excelente plataforma para construir o futuro das cidades brasileiras. A sociedade brasileira cresceu a partir de uma alma humana, da terra, e ambos os tipos de urbanismos mais antigos e informais revelam uma intensa conexão com a vida. Infelizmente, a intelligentsia brasileira ainda segue cultuando imagens de arquitetos europeus dos anos 1920 e isto vem destruindo a arquitetura do país. É uma pena. Responsáveis por grandes decisões desdenham o que consideram generativo do tecido urbano de escala humana e gostariam de arrasar este tipo de assentamento, assim que pudessem. Por outro lado, o que eles patrocinam, e pelo que são extremamente orgulhosos, eu considero inútil e patológico. Por isto, meu envolvimento com a arquitetura e o urbanismo brasileiros é complicado. Não temos base comum para um acordo. A elite que está no comando estupidamente deseja destruir ao invés de criar, eas pessoas comuns ainda são coniventes com essa loucura. Eu realmente gostaria de ajudar, mas a sociedade em geral tem de aceitar alguns princípios básicos sobre o que é saudável ou não na geometria do ambiente construído.
Links relacionados
Planetizen <http://www.planetizen.com/topthinkers>
urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana <http://www.scielo.br/urbe>
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