Eduardo Rosse, editor assistente de Per Musi, EM-UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil
Eduardo Campolina é professor da área de Composição da Escola de Música da UFMG, graduado pela Université de Paris VIII (França), Premier prix de Guitare pelo Conservatoire de Saint Maur (Paris), Mestrado pela Faculdade de Educação da UFMG com dissertação sobre o ensino da disciplina Harmonia, Doutorado pela Escola de Belas Artes da UFMG com tese sobre a questão da Técnica na música e na pintura no século XX.
Campolina contribuiu no número 33 da Per Musi com o artigo intitulado “Schoenberg/Boulez: ideia/sistema”. Ele explicita ali um diálogo entre dois compositores extremamente influentes, de duas gerações diferentes, apoiando-se tanto em passagens teóricas quanto em trechos concretos do repertório musical de cada um deles.
Como se sabe, Pierre Boulez faleceu em janeiro de 2016, deixando um legado amplo e fecundo. Sem reivindicar diretamente, os apontamentos do texto em questão tomam a forma de uma homenagem a Boulez.
A partir desse ensejo, o periódico Per Musi propôs um bate-papo com Campolina em torno de aspectos laterais à sua contribuição, em torno de aspectos da composição musical e dos compositores em foco, que parecem ocupar um lugar particular em seu trabalho e em sua experiência pessoal.
1. Eduardo, você teve uma parte importante da sua formação na França. Gostaria de falar da influência de Boulez nos círculos que você frequentou?
O contato que eu tive com Pierre Boulez se deu quando eu era ainda muito novo. Eu cheguei na França com 25 anos, em pleno processo formativo. E a Escola de Música da UFMG na década de 1970, período que a frequentei, era ainda bastante precária do ponto de vista de informações sobre a contemporaneidade. Eu sinto que eu fui privilegiado no seguinte sentido: eu cheguei na França numa época em que o Boulez estava muito disponível. O Ircam tinha sido fundado na década de 70 e eu cheguei lá em 81. Ele estava muito ativo dentro do IRCAM e muito disponível para fora, ministrando muitas conferências, onde falava muito de sua estética, de suas principais preocupações ligadas à questão da linguagem musical. Tinha também o Collège de France que foi outro fórum importante, onde ele dava todo ano oito ou nove conferências de uma hora fazendo uma reflexão sobre as principais questões que mobilizavam sua geração.
Então eu acho que o ponto de partida que eu poderia localizar aqui é esse: um grande privilégio que eu tive de poder ouvir uma reflexão atualizadíssima, vindo da parte de um dos principais personagens do ambiente musical no século XX.
Qual é a influência dele? É claro que se tratava de uma grande figura, que os franceses aliás não valorizavam muito. Talvez seja uma reflexão pessoal, mas que sempre me impressionava: eu assistia aula do Boulez no IRCAM com 12 pessoas numa sala, uma aula gratuita, aberta, e dentre esses 12 alunos, dois eram brasileiros, eu e um colega. Paris tem um conservatório por bairro, além de um grande conservatório cheio de alunos de composição. Mas eu sentia claramente que Boulez não estava no foco de interesse da imensa maioria dos estudantes franceses naquele momento. Não era um sujeito que penetrava no nível de escuta dos estudantes. É claro que se você fosse a um concerto – Boulez vai reger Répons – a sala ficava lotada, os ingressos se esgotavam. Mas eu não encontrava um colega meu de escola num concerto que o Boulez estava fazendo. Isso sempre foi para mim um enigma.
Ele tinha uma grande influência no meio intelectual, entre os compositores mais avançados, mas não necessariamente no grande círculo de estudantes dentro do qual eu me encontrava. É claro que internacionalmente ele era absolutamente reconhecido, mas às vezes já considerado também ultrapassado. Eu me lembro perfeitamente de uma conferência no IRCAM, com Marco Stroppa, que é um compositor italiano hoje em voga, dizendo “não, essa geração Boulez, Stockhausen para mim já passou. Eu faço parte de um outro grupo, eles para mim já envelheceram.” Já havia naquele momento também uma resistência diante de algo que era considerado quase como ultrapassado. É verdade que por um lado o Boulez já estava começando a ser ultrapassado por sua própria contemporaneidade. Já tinha gente no IRCAM pesquisando coisas com informática que apontavam para outros lugares.
A influência de Boulez não é, evidentemente, homogênea. Em cada círculo ela penetra de um jeito. No meu caso, era tudo do que eu precisava, mas que continha também uma ameaça. Você encontra uma pessoa que sem dúvida tem uma irradiação muito forte, um pensamento, uma música que são muito fortes e aí você corre o risco de ficar preso naquilo. Eu estava atento a isso na época, mas mesmo atento você não escapa. A grande questão é você absorver desses vultos naquilo que eles te acrescentam, mas ao mesmo tempo se libertar deles.
2. Você gostaria de falar de uma preocupação quase política, em relação à percepção musical, à restituição das estruturas sonoras na audição?
Essa foi uma problemática séria para a geração do qual o Boulez fez parte. A preocupação era tanta na pureza e equilíbrio da estrutura, que a percepção muitas vezes não era devidamente considerada. O próprio Boulez diz isso. Tem um grande texto no volume traduzido Pensar a Música Hoje II (Da necessidade de uma orientação estética), onde ele procede a uma revisão ampla dessa questão. Ele e outros perceberam que aquela atitude que colocava a estrutura quase como um cristal podia ser muito eficaz no nível da elaboração intelectual, mas do ponto de vista perceptivo não havia uma correspondência tão imediata. Eu me lembro de um ponto recorrente nas conferências do Boulez. Por diversas vezes o ouvi dizer que se você transmite muita informação, você corre o risco de cair num emaranhado onde a percepção se perde. Se você transmite pouca informação, você corre o risco de cair em uma situação tão clara que se torna sem interesse pela evidência mesmo. Para ele o pensamento criativo oscilava claramente entre estes dois extremos.
3. É verdade que, em relação a outros compositores do serialismo, Boulez talvez seja um caso onde a série está ali completamente pulverizada. Ela é uma forma de trabalhar o texto musical, mas retrospectivamente, pegando simplesmente uma partitura, fica muitas vezes impossível de voltar a ela. Ela é uma ferramenta de escrita mas não é ela que está em jogo para a percepção.
Claro. A série é mais um móbile, que estimula, que organiza, mas não no sentido de ser identificada enquanto série. Isso já ocorre um pouco em Schoenberg, em certos momentos de forma muito clara, em outros se perdendo. Mas uma coisa que me marcou muito no Boulez, nesse tempo em que eu o ouvi, era essa preocupação em se construir algo que tem que chegar em alguém. Havia uma crítica recorrente na França, de que Boulez fazia uma música para ser hermética. Em um determinado momento isso talvez tenha acontecido, mas houve uma revisão que parte dele próprio, quanto a essa questão.
4. E esse seria um aspecto eminentemente político: uma obra não existe em um vazio ideal, ela existe em um mundo, cheio de outros sujeitos, com os quais se estabelecem relações?
Sim, muitas das conferências que eu vi eram inclusive extremamente simples do ponto de vista do seu raciocínio. Era possível perceber uma tentativa muito sincera de de dizer “me entendam, o que eu estou fazendo é isto, e gostaria de ser bem compreendido”.
Esse seria um ponto interessante que conecta Schoenberg a Boulez. No tratado de harmonia de Schoenberg, por exemplo, ele está se posicionando dentro de uma grande briga com sua própria contemporaneidade. É um tratado pedagógico, extremamente interessante, mas sobretudo uma peça de defesa onde ele diz “olha, eu estou escrevendo esse livro porque eu sei harmonia sim, eu não sou essa pessoa que vocês acusam de não saber, e por não saber eu trabalharia de um jeito que é só meu, não, eu estou trabalhando de acordo com a tradição”. Ou seja, ambos sempre carregaram a preocupação com a comunicação clara do próprio pensamento que deveria estar legitimamente inserido na continuidade da tradição ocidental.
5. Você trata de um potencial ainda aberto no legado de Boulez. Haveria outros projetos nesse sentido?
A gente sabe que Boulez tenta uma síntese da música ocidental no fim do século XX. Ele tenta juntar uma preocupação em relação às alturas que vem da Segunda Escola de Viena, uma preocupação rítmica que vem muito do Stravinski, Bartók, pega a eletrônica e joga no meio, o timbre, a espacialização, forma, tentando fazer um grande produto, como se fosse um fecho da história do Ocidente nesse momento. Apesar dessa multiplicidade, eu sinto que a preocupação dele com a questão da altura talvez seja a mais marcante. Trazer a organização das alturas para um universo sistematizado, mas que não seja um sistema tão fechado quanto a série, num ambiente flexível mas eficaz do ponto de vista perceptivo. Tanto Schoenberg quanto Boulez buscavam sistematização e clareza na percepção. Mas a série de Schoenberg traz um aspecto rígido, mais fechado mesmo não o sendo. Boulez tenta abri-la, com uma estratégia muito interessante, conseguindo construir um universo de altura controlado, dentro de um sistema rigoroso mas não necessariamente inflexível. Mas quanto à continuidade imagino que vivemos agora em uma contemporaneidade totalmente múltipla e fragmentada, onde as grandes sínteses talvez não tenham mais lugar.
Para ler os artigos, acesse
LOUREIRO, E. C. V. Schoenberg/Boulez: ideia/sistema. Per musi[online]. 2016, n.33, pp.25-58. [viewed 22th September 2016]. ISSN 1517-7599. DOI: 10.1590/permusi20163302. Available from: http://ref.scielo.org/r8gnjx
Link externo
Per Musi – PM: www.scielo.br/pm
Sobre Eduardo Rosse
Eduardo Rosse é professor da Escola de Música da UFMG, onde desenvolve pesquisa em torno das estéticas ameríndias, de um ponto de vista etnológico, com foco em produções sonoras dos tikmũ’ũn (MG). Ao lado de Glaura Lucas, é líder do Grupo de Etnomusicologia da mesma instituição. Contato: mastigou@gmail.com
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