Luiza Bastos, jornalista, Belém, Pará, Brasil.
Lideranças indígenas iniciaram a recuperação da história de vida da própria etnia ao criar o projeto Arquivo Kamayurá: pesquisa, documentação e transmissão da memória. Kanawayuri Kamaiurá e Mayaru Kamayurá, das aldeias Ypavu e Morená, do Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso, foram contemplados para a realização da pesquisa através do edital “Rumos Itaú Cultural”, edição de 2017 – 2018, e formaram uma equipe essencialmente indígena com representantes das duas aldeias.
Entre os participantes do grupo estão Mayaru Kamayurá; cacique Kotok Kamayurá; os professores Auakamu Kamayurá, Kaluyawa Kamayurá e Tamaran Kamayurá; o Agente Indígena de Saneamento Kayamoary Kamayurá da aldeia Ypavu; e Marcello Kamaiurá da aldeia Morená. Além deles, integram o projeto “os cantores” Makary Kamayurá e Maiualu Kamaiura, “que entendem muito sobre todas as artes e rituais”, e a antropóloga Luísa Valentini, que facilitou a compreensão de questões técnicas e deslocamentos pelo Brasil.
Desde a década de 1990, Mayaru Kamayurá colecionava informações e materiais da sua família, especialmente aqueles que seu avô, o grande cacique e pajé Takumã Kamayurá, havia recebido de amigos pesquisadores ao longo da vida. Um incêndio em 2012 levou à perda total de todo esse material e, desde então, mesmo com inúmeros registros na Internet sobre a etnia, Mayaru e Kanawayuri recomeçaram a reunir os registros perdidos, considerando também a preocupação dos idosos com a transmissão de conhecimento e com a educação dos jovens.
Antes do início oficial do projeto aprovado pelo edital Rumos Itaú Cultural, houve uma pesquisa preliminar para ouvir os mais velhos sobre todos os caminhos a serem seguidos; os usos e circulação dos materiais coletados e a consulta às famílias kamayurá das aldeias, que antes moravam em Ypavu e agora moram em Morená também.
Figura 1. Equipe do Arquivo Kamayurá durante a reunião de escrita do projeto para o edital “Rumos Itaú Cultural 2017-2018”.
Depois dessa preparação, a guarda, o armazenamento e a gestão dos documentos nas aldeias começaram a ser planejados, bem como a formulação das etapas e “as perguntas de uma pesquisa indígena”: “quais são os registros que nos interessam? Quem são os amigos que poderiam nos ajudar com isso? Como saberemos se é possível usar esses registros? Como explicar sobre isso nas nossas aldeias?” e mais – “Quais são os equipamentos que servirão melhor nas nossas atividades, em termos de qualidade e durabilidade? Como podemos garantir o funcionamento desses equipamentos nas aldeias, no presente e no futuro? Como podemos capacitar jovens para aprender a manusear esses equipamentos, tanto para cuidar da documentação, quanto para produzir nova documentação?”.
Prontos para a busca das respostas, a equipe do projeto partiu Brasil a fora: São Paulo, Florianópolis, Campinas, Sorocaba e Salvador estavam nos planos iniciais para o reencontro de informações coletadas principalmente por pesquisadores antropólogos e linguistas, pois além de terem convivido com eles, “faziam registros mais extensos, cuidadosos, e, quando voltavam, traziam os livros que escreveram, cópias das fotografias e filmes, CDs, para nós termos os registros que eles fizeram”, contam os pesquisadores Kanawayuri Kamaiurá e Mayaru Kamayurá.
Seguindo esses e outros critérios importantes para as aldeias, a equipe visitou instituições, conheceu laboratórios, acervos e reservas técnicas, buscando principalmente os seguintes estudiosos atuantes no Parque Indígena do Xingu, criado em 1961: Carmen Junqueira, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), que trabalha com os kamayurá há mais de 50 anos; o professor de antropologia Rafael de Menezes Bastos, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); a professora de linguística Lucy Seki, da Universidade de Campinas (UNICAMP, já falecida); e o professor Pedro Agostinho, da Universidade Federal da Bahia (UFBA, recentemente falecido).
Também foram considerados para a pesquisa os registros de visitantes, que datam desde 1884, quando a expedição do alemão Karl von den Steinen registrou, segundo os autores indígenas, “algo sobre o nosso modo de vida e os nossos conhecimentos: nossa língua, nossas artes, nossos rituais. Eles escreveram, desenharam, fotografaram, filmaram, gravaram, reuniram objetos”.
Durante a fase da pesquisa de campo, em 2019, ao mesmo tempo em que conhecia os registros históricos – como foram feitos, como são usados e cuidados -, a equipe do Arquivo Kamayurá focava em informações que pudessem contribuir com o desenvolvimento de novas políticas e estratégias de salvaguarda e transmissão de conhecimentos para o futuro da etnia. Com isso, novas parcerias institucionais foram celebradas, além de aulas, palestras e oficinas ministradas. Na volta para as aldeias, os kamayurá foram convidados a conhecer uma coleção arqueológica recolhida pelo Sr. Aracy Passos Vieira, sob a guarda do Museu Antropológico da Universidade Federal de Goiás (UFG).
Figura 2. Visita ao professor Rafael de Menezes Bastos.
Entre os vários desdobramentos importantes da pesquisa, estão as conversas com a arquiteta Clarissa Morgenroth e a diretora de teatro Cibele Forja, desde 2018, sobre a ideia do “Manual de Arquitetura Kamayurá” (ver links) para documentar tecnologias tradicionais de construção das casas kamayurá, com desenhos, plantas, registros fotográficos e modelos 3D importantes para professores não-indígenas e estudantes indígenas, com acesso a novos conhecimentos de tecnologias e técnicas da arquitetura tradicional.
A terceira etapa do projeto precisou ser adiada para 2022, devido à pandemia de covid-19. Nessa fase final, os viajantes apresentaram os resultados da pesquisa nas aldeias Ypavu e Morená, em discussões entre a equipe do Arquivo e mestres de saberes kamayurá, culminando em um parecer com diversos comentários, entre os quais: “A diferença, agora que está sendo feita uma pesquisa sistemática, é que, quando esses registros se tornam acervo do Arquivo Kamayurá, as pessoas podem entender melhor a importância desses materiais e os cuidados que precisam ser tomados, tanto dentro quanto fora das aldeias”.
Essa documentação cultural feita pelos próprios indígenas foi outro ponto destacado no projeto, a partir da compra de computadores, câmeras fotográficas e acessórios para a produção digital de boa qualidade nas aldeias, onde o cuidado para a manutenção e armazenamento dos equipamentos e informações vem sendo desenvolvidos com os parceiros do projeto.
Uma dificuldade destacada pelos pesquisadores foi o fato de ainda não existirem muitos editais e financiamentos que façam o investimento necessário para uma pesquisa “sem cobrar das equipes indígenas que seja feita alguma exposição, algum show, alguma palestra”. Na prática, a equipe descobriu que “isso apressa demais as várias discussões que precisam ser feitas, que podem levar anos, no cotidiano dos povos indígenas”. Esses foram apontamentos importantes diante da dificuldade de encontrar um edital que apoiasse a pesquisa feita por eles mesmos, com as suas metodologias e de modo autônomo, como destacaram os autores ao reconhecerem também o investimento do Instituto Itaú Cultural e agradecerem especialmente à equipe do Programa Rumos, entre outros, por todo o apoio que receberam.
O Arquivo Kamayurá deu início à pesquisa sistematizada da história, memória e cultura do povo kamayurá com registros feitos pelo próprio povo kamayurá. Por fim, a equipe de pesquisa prepara-se para novas expedições depois de receber notícias sobre outros registros em vários lugares do mundo e busca formas de viabilizar viagens, reencontros e informações importantes para a formação de novos mestres da cultura kamayurá.
A íntegra do artigo que relata a iniciativa kamayurá está no Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas disponível em http://editora.museu-goeldi.br/humanas/
Referências
AGOSTINHO, P. Kwarìp: mito e ritual no Alto Xingu. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária, 1974.
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Escola da Cidade & Povo Kamayurá. Manual de arquitetura Kamayurá: a construção da ‘Ok Eté pelo povo Kamayurá. Escola da Cidade. 2019b [viewed 22 June 2023]. Available from: https://issuu.com/annajubs/docs/190812_kamayura_casatradicional
JUNQUEIRA, C.S.A. Tempo e imaginário: o pajé e a antropóloga, 50 anos de diálogo. Revista Eletrônica Mutações [online]. 2017, vol. 7, no. 13, pp. 837-920 [viewed 22 June 2023]. Available from: www.periodicos.ufam.edu.br/index.php/relem/article/view/3487
MENEZES BASTOS, R. A musicológica kamayurá: para uma antropologia da comunicação no Alto-Xingu. Brasília: Fundação Nacional do Índio, 1978.
SEKI, L. Gramática do Kamaiurá: língua Tupi-Guarani do Alto Xingu. Campinas: Editora da Unicamp, 2000.
VALENTINI, L. Arquivos do futuro: relações, caminhos e cuidados no arranjo preliminar da documentação pessoal de antropólogos. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2020.
Para ler o artigo, acesse
KAMAIURÁ, K. and KAMAYURÁ, M. Arquivo Kamayurá: pesquisa, documentação e transmissão da memória. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum. [online]. 2023, vol. 18, no. 1, e20220086 [viewed 22 June 2023]. https://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0086. Available from: https://www.scielo.br/j/bgoeldi/a/hSyxdPvjswVtSCCWTCfb8Yy/
Links externos
Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas – BGOELDI: https://www.scielo.br/j/bgoeldi/
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