Eduardo Rocha, jornalista, Belém, Pará, Brasil.
Segundo o Ñande Ru1 Eduardo, os conhecimentos tradicionais indígenas constituem uma grande teia na qual coabitam o mundo biofísico e outros elementos, como o ar, a água, a terra, o fogo, a fauna, a flora e os demais seres. Essa interconexão é fortalecida por meio dos conhecimentos tradicionais, materializados em rezas, rituais e celebrações, e que, nas palavras do rezador, são “o segredo do nosso bem viver”. Isso é transmitido de geração em geração, dos anciões para as crianças.
Ele enfatiza: “Está tudo interligado em cinco eixos: o ar, a água, a terra, o fogo e a mata. Montanhas, floresta, rios, brejos, cerrado, tudo interligado. E as rezas [são] a teia que fortalece e fazem valer esse conhecimento. Nesse momento, falamos com as sementes, com a chuva, com a terra. É essa ligação que faz os jara2 permanecerem por perto e, assim, garante a sobrevivência de todos os seres vivos”.
É por meio da reza, que os indígenas alcançam o poder das plantas medicinais. “Na reza, sabemos o que pode curar, o que [se] pode caçar, aonde [se] pode ir, de acordo com o tempo indicado pela fala do Ñande Ru com os jara“, completa Ñande Ru Eduardo. Já através do canto, entrecruzam-se o passado, o mundo espiritual e o presente, para se imaginar a construção do futuro.
Esse conhecimento tradicional – expresso por meio de linguagens da floresta, da terra, dos rios e de outros elementos do mundo – se manifesta nas atividades mais básicas, como o plantio de alimentos, o tratamento de enfermidades e, inclusive, a educação no contexto familiar.
Por muito tempo, a ciência indígena e os conhecimentos tradicionais foram negligenciados pelo mundo não indígena. Contudo, recentemente, nota-se um interesse crescente por parte das escolas e universidades pelos conhecimentos ancestrais dessas comunidades, como assinala Ñande Ru Eduardo.
“Os karaí3 não sabem entender o valor da ciência indígena, do nosso conhecimento próprio, específico. Mas agora parece que vem mudança. Eu vejo mesmo algo mudando. A universidade, as escolas estão ficando interessadas no nosso conhecimento milenar. Isso é muito bom, porque em algumas famílias kaiowá o conhecimento tradicional já está sendo deixado de lado e, para isso não acontecer, [é preciso] manter a língua, que é a essência do nosso conhecimento”.
A racionalidade integracionista da sociedade karaí (branca) tem atingido a construção e o compartilhamento de saberes desse povo. É estratégico para a sobrevivência dos cidadãos Guarani-Kaiowá o registro oral e escrito dos conhecimentos culturais. Esse fator é uma das principais motivações do estudo de Sônia Pavão e Laura Jane Gisloti (Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD), que pode ser conferido no artigo Memórias bioculturais dos Guarani-Kaiowá sobre a floresta e os seres que a coabitam: ecologia cosmopolítica na perspectiva da etnoconservação, publicado no vol. 18, no. 2 (2023), do Boletim Museu Paraense Emílio Goeldi – Ciências Humanas.
O objetivo desse estudo foi registrar as memórias bioculturais do povo Kaiowá sobre a floresta e os seres que a coabitam e refletir sobre elas, a fim de tecer um diálogo sobre a etnoconservação, na perspectiva da ecologia cosmopolítica.
De acordo com o estudo mencionado, no entendimento do povo Guarani-Kaiowá os seres humanos são parte de uma comunidade florestal muito mais ampla, diversa e complexa do que se costuma pensar.
Para apreensão desse sentido da realidade sob o ponto de vista indígena, as pesquisadoras optaram por uma metodologia com construção colaborativa e participante, considerando as falas de pesquisadores kaiowá e de sua comunidade, de uma pesquisadora não indígena, além de outras fontes de pesquisa.
Resistência
O povo Guarani-Kaiowá tem construído processos de resistência por meio de ações coletivas autônomas em prol da valorização das memórias. Essas iniciativas visam também promover a recuperação socioterritorial e impulsionar a restauração socioecológica, tendo como base as formas de manejo tradicional. Isso resulta em uma força político-espiritual que está relacionada aos entes que compõem a dimensão da cosmopolítica, o que inclui, inclusive, a memória de lutas passadas desse povo.
“Na situação de conflito, violência e resistência dos Guarani-Kaiowá, podemos refletir sobre o discurso xamânico em um contexto em que a floresta está devastada desde o século XX, e a luta é pela retomada de porções do tekoha e pela possibilidade de reaproximar os guardiões que se afastaram com a devastação da floresta pelos karaí.”, apontam as pesquisadoras.
Assim, retomar as áreas do tekoha é recuperar hábitos e práticas dos antigos, diante do ambiente cada vez mais urbano das grandes reservas. Ou seja, essa mobilização engloba a relação da luta pela terra, o xamanismo e a política. Essa cosmopercepção de mundo, ou mundos, por parte dos povos indígenas tem sido objeto de estudo das universidades, inclusive, com o engajamento de pesquisadores indígenas. No entanto, no território Guarani-Kaiowá, a floresta é, progressivamente, descaracterizada, o que afeta a vida desse povo originário brasileiro.
“Hoje a floresta desapareceu quase completamente, ‘karai roupa ñande ka‘‘aguype – os brancos comeram toda nossa floresta’, afirmam consternados os Kaiowá, enfatizando a irracionalidade da ocupação da região. A vida do índio ficou triste’, como alertam os xamãs kaiowá”.
Esse processo foi consumado pela imposição de territórios heterônomos do Estado, a partir da Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870) e aprofundado com a criação das reservas indígenas (1915-1928), forçando o deslocamento dos coletivos para que as terras servissem ao agronegócio. Isso tem gerado, a aniquilação da biodiversidade local e aprofundamento dos processos de insegurança e instabilidade territorial desse povo.
Floresta como ‘tekoha’
A construção da vida para o povo indígena a partir da sua relação com a floresta, nos aspectos de cosmovisão, cosmopercepção e como fonte de sobrevivência e preservação das paisagens naturais, algo visceral para a comunidades, é o foco das pesquisadoras. Nesse processo, o diálogo entre a ciência e os saberes e fazeres dos indígenas ganha profundidade.
Áreas verdes geridas por povos indígenas são essencialmente paisagens culturais preservadas e manejadas pelas populações originárias, que mantêm uma relação de reciprocidade e cuidado mútuo. As autoras do artigo consideram a ecologia política e cosmopolítica no contexto de necessidade de aprofundamento da relação entre as ciências ambientais e as ciências indígenas, o que engloba novos léxicos teórico-metodológicos para compreensão dos processos de restauração e conservação da biodiversidade, associados simultaneamente às autonomias e aos movimentos de livre autodeterminação dos povos.
No coração da mata
No entorno do município de Amambai, com quase 35 mil habitantes, no sul do Mato Grosso do Sul, foram criadas as reservas indígenas de Amambai, Limão Verde e Jaguari, somando uma população de quase 9.000 indígenas do povo Guarani-Kaiowá, conforme os dados da coordenadoria da Fundação Nacional do Índio (Funai) da localidade.
O Tekoha Tapy Kora, Aldeia Limão Verde, foi criado em 1928 pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Nessa região, a vegetação natural predominante faz parte dos domínios da Mata Atlântica. O processo de devastação do bioma e o distanciamento das reservas indígenas dos cursos d´água, como resultado de um desterro compulsório, criam um cenário no qual o Estado, que deveria ser guardião, abre caminho para a expansão de políticas econômicas de espoliação.
Referências
BENITES, E. and PEREIRA, L.M. Os conhecimentos dos guardiões dos modos de ser–teko jára, habitantes de patamares de existência tangíveis e intangíveis e a produção dos coletivos kaiowá e guarani. Tellus [online]. 2021, vol. 44, pp. 195-226 [viewed 09 October 2023]. https://doi.org/10.20435/tellus.vi44.745. Available from: https://tellus.ucdb.br/tellus/article/view/745/782
Para ler o artigo, acesse
PAVÃO, S. and GISLOTI, L.J. Memórias bioculturais dos Guarani-Kaiowá sobre a floresta e os seres que a coabitam: ecologia cosmopolítica na perspectiva da etnoconservação. Boletim Do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas [online]. 2023, vol. 18, no. 2, e20220006 [viewed 09 October 2023]. https://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0006. Available from: https://www.scielo.br/j/bgoeldi/a/SMYVk4RwKVLWm6vRTHbVWVr/#
Links externos
Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas – BGOELDI: https://www.scielo.br/j/bgoeldi/
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Povos Indígenas no Brasil: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Guarani_Kaiow%C3%A1
Teko Arandu: https://www.tekoarandu.org/
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