Relembrar é reviver: memória da análise do discurso no Brasil

Carlos Gontijo Rosa. Revisor responsável da Revista Bakhtiniana, Bolsista FAPESP, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.

O artigo Maria Emilia Amarante Torres Lima: um resgate da memória da Análise do Discurso no Brasil, publicado no mais recente número da Revista Bakhtiniana (vol. 16, no. 3), trata da trajetória da pesquisadora mineira Maria Emilia Amarante Torres Lima na análise do discurso de linha francesa, especialmente em seu período de formação iniciado no Brasil, mas consolidado nos anos de pesquisa doutoral na França, sob orientação de Michel Pêcheux. Mailson Fernandes Cabral de Souza (Universidade Católica do Pernambuco), o autor do artigo, volta-se para a história da chegada e estabelecimento da análise do discurso no Brasil e para o apagamento da pesquisa de Torres Lima e do Setor de Psicologia Social da UFMG no processo. Ao retomar os anos 1970, Souza resgata as relações do grupo mineiro com Pêcheux e seu grupo e suas principais produções na área no Brasil. O artigo, entretanto, vai além da curiosidade histórica e reivindica o quinhão que cabe aos pesquisadores da UFMG, em especial aos 11 anos de dedicação de Torres Lima, na introdução da análise do discurso pecheutiana no Brasil.

Torres Lima constrói seu estudo sobre os discursos de 1º de maio proferidos por Getúlio Vargas, mas um de seus artigos, em coautoria com J. Léon (1979), vai se debruçar sobre as anáforas. Esse artigo claramente opera como pavimentação, experimento-em-prática da construção da teoria pecheutiana. Ao resgatar a presença de Torres Lima no âmbito da pesquisa em análise automática do discurso, Souza se interessa em ampliar, dinamizar e variar as referências. Nas palavras muito oportunas do autor, ele “pretende cumprir três funções: 1) um erro a corrigir: mostrar que os trabalhos em torno da obra de Pêcheux não se iniciam no Brasil unicamente a partir de Orlandi; 2) um esquecimento a reparar: a memória de Lima dentro da Análise do Discurso; 3) trazer uma nova perspectiva: a dissociação da Análise do Discurso pecheutiana de uma única narrativa histórica” (p.10).

Imagem: Arquivo pessoal

 

Souza reformula, a meia luz, a arena discursiva dos primeiros estudos da análise do discurso peuchetiana no Brasil, a polêmica de uma hegemonia do pensamento que recai sobre a dominação de um campo, de uma área de conhecimento. É nesse sentido que relembrar é reviver, é manter a palavra viva enquanto discurso:

“(…) em todo signo ideológico cruzam-se ênfases multidirecionadas. O signo transforma-se no palco da luta de classes.

Essa multiacentuação do signo ideológico é um aspecto muito importante. Na verdade, apenas esse cruzamento de acentos proporciona ao signo a capacidade de viver, de movimentar-se e de desenvolver-se. […] A memória histórica da humanidade está repleta desses signos ideológicos mortos, incapazes de serem palco de embate dos acentos sociais vivos. No entanto, ma vez que o filólogo e o historiador se lembram dele, eles ainda preservam os últimos sinais vitais (Volóchinov, 2017, p.113).”

Em certo sentido, o que Souza faz, com o resgate memorialístico de Torres Lima, é reativar as possibilidades de diálogo, de movimento desse ramo da análise do discurso. Ao jogar luz sobre um grupo menos citado, ele expõe o Outro de um Eu que falava sozinho. O passado não é apenas olhado no passado, como passado, mas em termos de possibilidade, hoje, a novos diálogos e, consequentemente, novas formulações, que podem (ou não) colocar em xeque (falsos?) postulados que se estabeleceram em disputas discursivas anteriores.

Assim, os objetivos do autor são alcançados, no sentido de proporcionar ao leitor estudioso da análise do discurso uma alternativa aos caminhos canônicos da teoria no Brasil. Ao mesmo tempo, prevalece a generosidade de que essa é uma oferta de nova alternativa, que em nada desmerece o já produzido em torno da teoria no Brasil. Seu impacto, portanto, é o da possibilidade: possibilidade de novas abordagens dentro da teoria a pesquisadores cujo pensamento corra por outros trilhos. Abrir caminhos (desde que coerentes e sensíveis ao já posto) é sempre trazer vida, arejar as áreas de conhecimento.

Agora, após a propícia publicação pela revista Bakhtiniana dessa justa homenagem-resgate de Maria Emilia Amarante Torres Lima e de seu grupo de pesquisa da UFMG pelo estudioso pernambucano, o impacto que podemos esperar é o da pluralidade – de pensamentos, de formas, e da consequente ampliação da área da análise do discurso. Que saibamos receber a pluralidade como alternativa, possibilidade, ampliação, e não como ameaça ao já estabelecido.

Referências

LÉON, J. and LIMA, M.E.A.T. Études de certains aspects du fonctionnement de l’Analyse Automatique du Discours: Traitement des syntagmes nominaux en expressions figées et segmentation d’un corpus en séquences discursives autonomes. T. A. Informations, revue internationale du traitement automatique du langage. 1979, vol. 20, no. 1, pp. 25-46 [viewed in 17 November 2021]. Available from: https://halshs.archives-ouvertes.fr/halshs-01143380

VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociolófio na ciência da linguagem. São Paulo: Editora 34, 2017.

Para ler o artigo, acesse

DE SOUZA, M.F.C. Maria Emilia Amarante Torres Lima: um resgate da memória da Análise do Discurso no Brasil. Bakhtiniana, Rev. Estud. Discurso [online]. 2021, vol. 16, no. 3, pp. 8-35 [viewed 17 November 2021]. https://doi.org/10.1590/2176-457348332. Available from: https://www.scielo.br/j/bak/a/5bjXLdVshGS5fpwzqQVt7dR/?lang=pt

Links externos

Área de Psicologia Social da UFMG: https://www.fafich.ufmg.br/pospsicologia/areas-de-concentracao/psicologia-social/

Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso – BAK: www.scielo.br/bak

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

ROSA, C.G. Relembrar é reviver: memória da análise do discurso no Brasil [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2021 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2021/11/17/relembrar-e-reviver-memoria-da-analise-do-discurso-no-brasil/

 

One Thought on “Relembrar é reviver: memória da análise do discurso no Brasil

  1. Mailson Fernandes Cabral de Souza on November 19, 2021 at 18:17 said:

    Fico muito grato por essa resenha tão generosa e atenta ao meu texto. Que saibamos receber a pluralidade sempre como possibilidade. Um abraço!

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *

Post Navigation