Carlos Gontijo Rosa, Revisor responsável da Revista Bakhtiniana, Professor da Universidade Federal do Acre, Cruzeiro do Sul, AC, Brasil.
No artigo A Amazônia judaica de Moacyr Scliar: a palavra alheia como afirmação da não-coincidência do outro em si, publicado como ahead of print na Bakhtiniana, João Carlos de Carvalho, da Universidade Federal do Acre, relembra os caminhos literários já trilhados na/sobre a Amazônia por autores estrangeiros e nacionais, em que se destaca a floresta em sua descrição física e metafórica como “o paraíso das riquezas naturais e o inferno da selva, com suas doenças tropicais, insetos incômodos, nativos agressivos, fome e ambientes labirínticos”.
Da condição fluida dos sentidos que a Amazônia adquire na história, o autor passa à análise das questões judaicas na obra de Moacir Scliar, em comparação com o que escreve Márcio Souza e com a presença judaica no mundo. Para tanto, Carvalho evoca a ideia de “itinerância judaica” como parte dessa cultura e de como ela interage no mundo.
Para Carvalho, “lidar com as contradições que movem o sujeito errante em um país altamente assimilador como o Brasil torna-se, talvez, o grande mote e desafio para um escritor judeu entre nós”. Esse choque de culturas é aquilo que o pesquisador vai nos mostrar nas obras analisadas, seja no ensaio autobiográfico publicado por Scliar e Márcio Souza, “Entre Moisés e Macunaíma”, seja nas obras ficcionais “A majestade do Xingu e Cenas da vida minúscula”. Na análise, percebemos que não existe exatamente um embate entre a cultura brasileira/amazônica e a cultura judaica dos autores, expressas também em suas personagens, mas que essa assimilação, nem por isso, tem os dois lados: ela pode ser igualmente violenta ou ser geradora de novas ideologias e relações com o mundo.
Da análise das obras de ficção em si, gostaria de destacar dois aspectos, entre os muitos pontos de interesse que permeiam todo o texto – destaques que Carvalho faz dos textos de Scliar e que desencadearam outros pensamentos no meu eu-pesquisador.
Figura 1. Moacyr Scliar.
Primeiramente, o recorte que o pesquisador faz da narrativa “Cenas da vida minúscula”, acerca da tentativa de reescrever a Bíblia, remete, enquanto mote, à “História do cerco de Lisboa”, de José Saramago, na medida em que, em ambos vão propor a mudança de um olhar já estabelecido sobre a História: o texto português, sobre a conquista de Lisboa; o texto brasileiro, uma reescritura da Bíblia. Nesse recorte, Carvalho afirma que a relação entre a Amazônia e a cultura judaica é que “ [a Amazônia] receberá o alimento ficcional como repositório de séculos de histórias que a saga judaica inspira a partir da pena scliariana”. Nesse romance, ainda de acordo com o autor, “a Amazônia se projeta como terra acolhedora de signos primevos”.
Por outro lado, em “A majestade do Xingu”, Scliar vai além da identificação da Amazônia como espaço, porque empreende, no livro, “uma escavação do outro em si, tendo a Amazônia como pano de fundo”. O narrador do romance, judeu russo estático em seu lugar (São Paulo) e distante da Amazônia, vai se desdobrar na “figura quase lendária do médico Noel Nutels, judeu russo, que emigra para o Brasil em 1921 e se torna um devoto à causa indígena como médico daquela população esquecida”, que conheceu no navio para o Brasil e nunca mais viu. A projeção da Amazônia, portanto, se dá não apenas no espaço, mas também na própria personagem que a percorre, no caso, Noel Nutels.
Se o texto de Carvalho disparou em mim certos gatilhos enquanto professor, pesquisador e newbie em terras amazônicas, outros muitos podem ser disparados na leitura por diferentes leitores; questões de ordem teórica da literatura e da análise dialógica do discurso, mas também questões práticas do pesquisador no mundo e do mundo da pesquisa.
Escrevo este texto na minha primeira semana em terras acreanas, recém-contratado pela Universidade Federal do Acre. Leio, portanto, o texto de Carvalho e, através dele, a Amazônia de Scliar, de uma certa distância. E, se acredito no que fala Bakhtin (2017, pp. 18), que “no campo da cultura, a distância é a alavanca mais poderosa da interpretação”, eu apenas entro no jogo de alavancas acionadas por Carvalho e de tantas outras identificadas por ele no texto de Scliar.
Por fim, o que Carvalho faz é mobilizar nossa percepção da construção da cultura judaica na literatura e na cultura, sempre diaspórica, bem como da “maleabilidade” dos signos mobilizados pela ideia de Amazônia na literatura e na cultura. Da convergência desses dois universos, surge uma relação tensa, nem sempre orgânica, mas que produz objetos artísticos únicos, bem como uma reflexão potente deles oriunda, que vale a pena empreender.
Referências
BAKHTIN, M. A ciência da literatura hoje (Resposta a uma pergunta da revista Novi Mir). In: BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. São Paulo: Editora 34, 2017.
Para ler o artigo, acesse
CARVALHO, J.C. A Amazônia judaica de Moacyr Scliar: a palavra alheia como afirmação da não-coincidência do outro em si. Bakhtiniana [online]. 2023, ahead of print [viewed 26 June 2023]. https://doi.org/10.1590/2176-4573p59270. Available from: https://www.scielo.br/j/bak/a/PqQCH4JjQTWmwYF97s4YGKv/
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