Beatriz Angélica Cruz, médica graduada na Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (FAMERP), São José do Rio Preto, São Paulo, Brasil.
O artigo Estamos preparando os futuros médicos para atendimentos de situações de violência com enfoque em gênero e em sexualidades não heterossexuais? Relato de uma “experiência” educacional diagnóstica, publicado no periódico Interface – Comunicação, Saúde, Educação, vol. 27 (2023), apresenta os resultados de uma experiência educativa realizada a fim de avaliar se alunos de medicina dos dois últimos anos da graduação (em estágio supervisionado obrigatório) estão capacitados a atender adequadamente pessoas que sofrem violências relacionadas a seu gênero ou à sua identidade de gênero/orientação sexual. Nossa principal conclusão é que não estão.
A pesquisa foi realizada principalmente pela avaliação do atendimento de duas consultas simuladas (OSCE). Todos os alunos em estágio supervisionado obrigatório (internato) foram convidados, sendo que apenas cerca de 10% deles se interessaram em participar da pesquisa. Talvez o dado mais importante desse estudo seja a elevadíssima taxa de abstenção dos alunos. Por quais razões os alunos não estariam interessados em saber, sem qualquer prejuízo acadêmico advindo do resultado das avaliações, se estão aptos a atender tais demandas?
O estudo foi desenvolvido entre 2019 e 2021 e conduzido por dois alunos em seu último ano de graduação, uma aluna no 5º ano e professores envolvidos não só com a docência, mas também com a direção pedagógica do curso de medicina da instituição. Metade dos autores não são heterossexuais, metade são mulheres. A pesquisa foi motivada pela observação das habilidades não clínicas de colegas de curso, pela curiosidade e preocupação ao nos imaginarmos fora do cenário acadêmico sendo responsáveis pelo atendimento de tais situações, infelizmente bastante comuns no cenário brasileiro.
Correlaciono aqui tanto os textos disponíveis na sessão de debates do periódico Interface – Comunicação, Saúde, Educação quanto artigos anteriores, de 1999, em uma sessão especial de debates do mesmo periódico, após a marcante morte do estudante Edison Tsung Chi Hsueh durante o trote nas dependências da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, no 1º semestre do mesmo ano, e artigos mais recentes, contemporâneos à Comissão Parlamentar de Inquéritos (CPI) que investigou a violação de direitos humanos nas instituições de ensino superior do estado de São Paulo, com grande destaque para os cursos de medicina.
O descontentamento da sociedade civil com os aspectos subjetivos do atendimento médico já é antigo. Ao abordar de forma mais específica as competências técnicas e subjetivas necessárias no atendimento a situações de violência, conseguimos observar como ambos os temas são pouco tratados na graduação. Ademais, ao aprofundarmos a pesquisa e considerarmos os dados anteriores, notamos que, possivelmente, a raiz do problema resida não apenas no currículo formal, mas também na normalização e na banalização da violência ao longo de todo período formativo de médicos. Isso abrange desde os trotes, assédios na pós-graduação (residência), violências físicas, até a intensa pressão psicológica que os acadêmicos são expostos desde seu ingresso – e muitas vezes antes – em um dos cursos mais concorridos do país.
Poderíamos nos debruçar também sobre as extensas formas de violência que podem ser perpetradas durante o atendimento médico, desde as mais discretas até as mais explícitas. Casos assim figuram quase diariamente na mídia. Contudo, incorporar outros tipos de violência nos levaria a ultrapassar o escopo de uma pesquisa de iniciação científica.
Dentre os textos mais antigos, publicados há mais de duas décadas, destaco o artigo intitulado O trote como sintoma: a dor de lidar com a dor alheia, escrito por um filósofo que faz uma revisão histórica dos modos de enfrentamento da dor alheia na história mais recente da humanidade, além de fornecer uma primeira definição do que conhecemos como empatia e compaixão.
Também não posso deixar de relacionar esse texto a um artigo publicado na Revista Cult, como parte de uma edição especial sobre Hannah Arendt, sobre violência e a banalidade do mal. Enquanto o primeiro texto busca justificar a prática da violência com ingressantes do curso como um mecanismo de escape ao infindável sofrimento de outras pessoas, ao qual somos expostos durante a graduação, associando esse comportamento a um processo de desumanização, que é apresentado como o único procedimento viável ao enfrentamento da dor que se sente ao cuidar do outro que sofre e com as situações extremas que vivenciamos durante a formação e o exercício profissional; o segundo texto aborda o mal de maneira mais ampla, retratando-o como uma renúncia à capacidade de julgamento, caracterizando-o como um mal banal.
A grande questão da prática do mal banal é que seu praticante se submete a uma lógica externa que turva sua consciência, impedindo-o de enxergar e compreender sua responsabilidade pelos atos que pratica. Observo o mal banal talvez como um dos grandes agentes da perpetuação da violência no meio médico. Ora, se não se reconhece mal em violentar calouros, se não há consequência para os profissionais-modelo (professores, preceptores, residentes), que praticam ativamente ações violentas no exercício de sua profissão, qual seria o meu incentivo para aprender a cuidar adequadamente de pacientes que sofreram violência? Por que me interessaria por saber se tenho as competências e habilidades necessárias para atender vítimas de violências, possivelmente até mesmo por colegas de profissão? Além da banalidade, há o corporativismo, que protege sutilmente aqueles que violam o outro e ativamente repreende os que tentam romper com essa ordem.
Não me proponho a encerrar o debate, tampouco a apresentar soluções simples e objetivas para a problemática da violência na medicina, tanto na sua prática quanto na condução adequada de casos de violência. Fazer isso seria ignorar a complexidade da temática em questão. Abro mão destas reflexões para convidar a todos os interessados a contribuírem para esse assunto. Recordemos daqueles que ficaram pelo caminho e honremos suas memórias através de uma nova práxis médica.
É preciso não ter medo,
é preciso ter a coragem de dizer.
Referências
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RIBEIRO, R.J. O trote como sintoma: a dor de lidar com a dor alheia. Interface (Botucatu) [online]. 1999, vol. 3, no. 5, pp.153-60 [viewed 14 September 2023]. https://doi.org/10.1590/S1414-32831999000200020. Available from: https://www.scielo.br/j/icse/a/mtB8YRskNK3zrLV3XW7cSSQ/
Relatório Final da CPI de violações de direitos humanos das universidades paulistas [online]. Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. 2015, vol. 125, no. 67 [viewed 14 September 2023] Available from: http://www.al.sp.gov.br/repositorio/arquivoWeb/com/com3092.pdf
SCALISA, F. A face oculta da medicina [online]. Folha de São Paulo. Sessão Opinião. 13 Nov 2014 [viewed 14 September 2023]. Available from: https://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://assets-institucional-ipg.sfo2.cdn.digitaloceanspaces.com/2014/11/folha-13112014_A-face-oculta-da-medicina-13_11_2014-Opiniao-Folha-de-S.pdf
Para ler o artigo, acesse:
CRUZ, B.A., et. al. Estamos preparando os futuros médicos para atendimentos de situações de violência com enfoque em gênero e em sexualidades não heterossexuais? Relato de uma “experiência” educacional diagnóstica. Interface – Comunicação, Saúde, Educação [online]. 2023, vol. 27, e220098 [viewed 14 September 2023]. https://doi.org/10.1590/interface.220098. Available from: https://www.scielo.br/j/icse/a/ztcMNFSNdg6dh8cztQthrck/
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