Michel de Montaigne e a importância do conceito de juízo para a filosofia moderna

Por Diego dos Anjos Azizi, Professor de pós-graduação no Centro Universitário Assunção. São Paulo, SP, Brasil

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Sabemos que em Montaigne o uso do termo jugement é amplo e plural. Esse termo deriva do termo latino iudicamentum, que é o substantivo derivado do verbo iudicare, que significa julgar ou dar um veredito. Iudicare tem origem na palavra latina iudex, que significa juiz. Iudex, por sua vez, é composta de duas partes: ius, que significa lei (e, também, justiça) e dex, derivado do verbo dicere, que significa dizer ou declarar. Iudicare, portanto, está relacionado com o “dizer a lei” ou “declarar o justo”, ou seja, enunciar um julgamento para decidir sobre um assunto.

Montaigne frequentemente relaciona o termo jugement com o termo discours, o que pode indicar uma relação direta entre o ato de julgar (juízo como faculdade e ação de ajuizar) e o produto discursivo desse ato, ou seja, a sentença e a proposição. O que fica evidente é que o juízo, como sede da vida intelectual, moral e psicológica, possui um caráter necessariamente discursivo e isso não é sem razão, dado o fato de que Montaigne, como bem se sabe, era um magistrado, um juiz, e tinha como ofício, justamente, julgar. O caráter jurídico da palavra impregna o próprio conceito filosófico que Montaigne constrói em seus Ensaios, que são objeto de análise do artigo Os Ensaios de Michel de Montaigne como exercícios do juízo, publicado no periódico Trans/Form/Ação (vol. 47, no. 6, 2024).

Pintura presumidamente de Montaigne, um de um homem com barba, usando uma corrente de ouro

Imagem: Wikpédia.

Retrato presumido de Montaigne por um autor anônimo (anteriormente atribuído a Dumonstier) retomado por Thomas de Leu para adornar a edição dos Ensaios de 1608. Este retrato, dito de Chantilly, por ter sido adquirido pelo duque de Aumale em 1882, é hoje conservado no museu Condé. As roupas e decorações designam o membro da ordem de São Miguel, que lhe foi atribuída em 1577.

 

Que fique bem claro que Montaigne não é um filósofo analítico, assim, a definição de seus conceitos não é tão rígida, exclusiva e objetiva. Por muitas vezes, ele utiliza sinônimos para se referir a uma faculdade específica, mas o contexto sempre nos permite identificar sobre o que ele está falando. Faz parte da nova figura de sua filosofia o caráter fortuito e acidental de seu pensamento, esse é seu método, o que pode levar a entender que seu pensamento é contraditório, inconsequente, paradoxal (em um sentido negativo).

Fica claro, ao ler os Ensaios, que o juízo é uma faculdade avaliativa e valorativa e que, por volta de 1578 ou 1579, Montaigne reavalia sua posição quanto a ele. Por volta dessa época, segundo Frame (1976), o filósofo começa a perceber que, em sua crítica cética à razão, ao juízo, ao conhecimento, enfim, é a própria atividade do juízo que volta contra si mesmo as suas armas. Se Kant, na Crítica da Razão Pura, submete a razão ao tribunal da própria razão, Montaigne submete seu juízo ao tribunal do próprio juízo, mesmo que, a princípio, ele não estivesse consciente disso. Ao fazer isso, pode identificar qual sua função, quais seus limites e seus alcances e a melhor forma de excedê-los. “[A] Pois estabelecer a medida de nossa capacidade de conhecer e julgar a dificuldade das coisas é uma ciência grande e extrema […]” (Montaigne, II, 12, 2000, p. 254).

A filosofia, após a instauração dessa subjetividade ajuizadora, nunca será mais a mesma. Montaigne associa a vontade de se descrever e se examinar à ação de seu juízo e, antes de Descartes, associa essas duas faculdades (unidas na lógica estoica de Crísipo e ausente na lógica proposicional de Aristóteles). Montaigne ressignifica a função do juízo na filosofia e abre um caminho que Descartes irá desbravar com maestria. Ao introduzir o juízo no centro de seus Ensaios, não limitando-o à sua instância lógico-proposicional, Montaigne humaniza o humano e a própria filosofia, instaurando o pressuposto da finitude humana como o fundamento do próprio ato de filosofar.

Pintura "Meeting of thirty-five heads of expression" de Honore Daumier, que retrata diversas pessoas muito próximas umas das outras com expressões faciais e bocas visíveis, transmitindo uma variedade de emoções.

Imagem: WikiArt.

Pintura Meeting of thirty-five heads of expression de Honore Daumier, que retrata diversas pessoas muito próximas umas das outras com expressões faciais e bocas visíveis, transmitindo uma variedade de emoções.

 

Para ler o artigo, acesse

AZIZI, D.A. Os Ensaios de Michel de Montaigne como exercícios do juízo. Trans/Form/Ação [online]. 2024, vol. 47, no. 6, e02400242 [viewed 11 October 2024]. https://doi.org/10.1590/0101-3173.2024.v47.n6.e02400242. Available from: https://www.scielo.br/j/trans/a/ByL4k9cJBCVjWZCf4jtqVrj/

Referências

FRAME, D. Jugement et sens dans le chapitre “De la praesumption”. In: Montaigne et les Essais 1580-1590 (Actes du Congrès de Bordeaux). Paris: Champion-Slatkine, 1983. pp. 207-213.

FRAME, D. Montaigne’s dialogue with his faculties. French Forum [online]. 1976, vol. 1, no. 3, pp. 195-208, 1976 [viewed 11 October 2024]. Available from: https://www.jstor.org/stable/40550889

HARTLE, A. Montaigne and the origins of modern philosophy. Evanston: Northwestern University Press, 2013.

MONTAIGNE, M. Ensaios – Livro I. Tradução de Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

MONTAIGNE, M. Ensaios – Livro II. Tradução de Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

MONTAIGNE, M. Ensaios – Livro III. Tradução de Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

STAROBINSKI, J. Montaigne em movimento. Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia Das Letras, 1992.

Links externos

Trans/Form/Ação – TRANS: https://www.scielo.br/trans/

Revista Trans/Form/Ação: Instagram | Facebook | Academia.edu

Dossiê | Montaigne filósofo – Revista Cult: https://revistacult.uol.com.br/home/montaigne-filosofo/

Société Internationale des Amies et Amis de Montaigne): https://siaam.hypotheses.org/

 

Sobre Diego dos Anjos Azizi

É graduado e mestre em filosofia pela PUC-SP, especialista em ciência política pela FESP-SP e doutor em filosofia pela UFPR. Professor dos cursos de pós-graduação em filosofia e política do Centro Universitário Assunção.

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

AZIZI, D.A. Michel de Montaigne e a importância do conceito de juízo para a filosofia moderna [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2024 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2024/10/11/michel-de-montaigne-e-a-importancia-do-conceito-de-juizo-para-a-filosofia-moderna/

 

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