Chega de Bardin? Um apelo à renovação da Análise de Conteúdo brasileira

Rafael Cardoso Sampaio, Professor do programa de Pós-graduação em Ciência Política e do programa de Pós-graduação em Comunicação Social, Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR, Brasil

Cristiane Sinimbu Sanchez, bibliotecária, Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR, Brasil

Camila Schiavon Tigrinho, Mestranda pelo programa de pós-graduação em Ciência Política, Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR, Brasil

Karina Ernsen, Doutoranda pelo programa de pós-graduação em Ciência Política, Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR, Brasil

Josiane Ribeiro de Souza, Graduanda em Ciências Sociais, Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR, Brasil

Elysangela Dittz Duarte, Professsora Titular da Escola de Enfermagem, Departamento de Enfermagem Materno Infantil e Saúde Publica, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil

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A análise de conteúdo (AC) se firmou como uma das técnicas de pesquisa mais difundidas nas ciências humanas e da saúde no Brasil, uma presença constante em nossa trajetória como pesquisadores e orientadores. No entanto, observamos um fenômeno que merece uma reflexão aprofundada: a prática da AC no país, apesar de sua popularidade, parece enfrentar um desafio de estagnação, limitando seu potencial e distanciando-a de debates metodológicos internacionais. No centro dessa questão, encontramos uma referência predominante: a obra de Laurence Bardin.

Um estudo nosso recém depositado no SciELO Preprints, o terceiro de uma série sobre o tema, busca diagnosticar essa questão. Com o título provocador Chega de Bardin!: O Círculo Vicioso da Análise de Conteúdo Brasileira, nosso objetivo não é tecer uma crítica à autora ou aos pesquisadores que utilizam seu manual. Pelo contrário, buscamos nomear um fenômeno que, a nosso ver, restringe o avanço metodológico no país e, com isso, propor um deslocamento simbólico que consideramos essencial para a qualificação da ciência brasileira.

Partimos da hipótese de que a hegemonia do manual de Bardin vai além de sua aplicação em artigos e se estende à própria forma como a técnica é ensinada. Propomos a existência de um “círculo vicioso”, no qual os materiais tutoriais brasileiros, aqueles que buscam ensinar a aplicação da análise de conteúdo, tendem a replicar o modelo da autora, perpetuando não apenas seus pontos fortes, mas, sobretudo, suas limitações. Para investigar essa hipótese, analisamos um corpus de 71 materiais tutoriais brasileiros, avaliando a centralidade de Bardin e a abordagem de nove critérios de qualidade essenciais para pesquisas rigorosas, como transparência, replicabilidade e confiabilidade.

Nossos resultados confirmam essa percepção. Bardin é citada em 100% dos tutoriais analisados e, em 62% dos materiais, a estrutura metodológica ensinada, basicamente, reproduz a sua abordagem. Apenas um trabalho em todo o corpus apresentou uma crítica ou um contraponto ao seu modelo, o que demonstra uma naturalização preocupante dessa hegemonia.

Mais revelador é o alinhamento entre as ênfases do manual de Bardin e as dos tutoriais nacionais. Os critérios de qualidade mais abordados, como a definição da amostra e da unidade de análise, são precisamente os pontos fortes da obra da autora. Em contrapartida, as lacunas da AC praticada no Brasil coincidem com as omissões de seu manual, que não recebe atualizações substanciais há mais de duas décadas. Tópicos importantes no debate metodológico contemporâneo, como o treinamento de codificadores, a aplicação de testes de confiabilidade para mitigar vieses e cuidados com a replicabilidade, são sistematicamente negligenciados em ambos. Isso significa que ensinamos e praticamos uma ciência que não incorpora avanços essenciais para sua validação.

A questão central, portanto, não é avaliar se o manual de Bardin é “bom” ou “ruim”, mas reconhecer que ele se tornou, simbolicamente, a própria análise de conteúdo no Brasil. A obra, que teve um papel fundamental na introdução e sistematização da técnica em língua portuguesa, passou de uma ferramenta útil para um protocolo normativo, raramente questionado. Esse fenômeno tem consequências diretas na formação de novos pesquisadores, que são ensinados a ver em Bardin a única fonte legítima, segura e suficiente, o que desincentiva a busca por referenciais mais modernos e diversificados.

Nesse contexto, a expressão “Chega de Bardin!” deve ser lida como um convite a uma ruptura simbólica. Trata-se de reconhecer que a dependência de um único referencial, por mais relevante que tenha sido, pode gerar estagnação. Manter-se atrelado a um modelo concebido em outro contexto histórico significa ignorar os avanços no campo da pesquisa qualitativa, que hoje discute intensamente temas como a ciência aberta, a ética em dados digitais e a importância da transparência e da validação intersubjetiva.

Ao criticarmos o uso acrítico de Bardin, nosso objetivo é defender a própria análise de conteúdo. Acreditamos que a análise deve ser um processo intelectualmente desafiador, um exercício interpretativo criativo e rigoroso, adaptado às perguntas de pesquisa e à natureza dos dados, e não a simples execução de um roteiro.

Ao nomear e evidenciar a existência desse ciclo, nosso estudo oferece um diagnóstico que esperamos ser útil. Convidamos a comunidade acadêmica a debater suas práticas, revisar ementas, diversificar bibliografias e valorizar o rigor metodológico em suas avaliações. Não se trata de abandonar Bardin, mas de situá-la como uma referência histórica importante, ao lado de muitas outras que podem enriquecer e qualificar a pesquisa brasileira.

Para ler o preprint, acesse

SAMPAIO, R.C., et al. Chega de Bardin!: O Círculo Vicioso da Análise de Conteúdo Brasileira. SciELO Preprints [online]. 2025 [viewed 23 July 2025]. https://doi.org/10.1590/SciELOPreprints.12029. Available from: https://preprints.scielo.org/index.php/scielo/preprint/view/12029/version/12671

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Como citar este post [ISO 690/2010]:

SAMPAIO, R.C., et al. Chega de Bardin? Um apelo à renovação da Análise de Conteúdo brasileira [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2025 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2025/07/23/chega-de-bardin-um-apelo-a-renovacao-da-analise-de-conteudo-brasileira/

 

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