Usos da história e da astronomia na legitimação de projetos coloniais nas Américas

Petrus Albino de Oliveira, mestrando no Programa de Pós-Graduação em História e voluntário da Revista Varia Historia, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil.

Logo do periódico Varia HistoriaEm novembro de 1680, um cometa brilhante e volumoso apareceu aos olhos do mundo e ali permaneceu até março de 1681. Nesse período, alimentou teorias e tratados acerca de seus significados e simbolismos. Um fenômeno global, mas de interpretações conjunturais e próprias. É justamente nessa tensão entre o universal e particular que o artigo Writing the History of the New World into Universal History: Colonial Chronologies and Astral Knowledge in Late-Seventeenth Century Spanish America se constrói.

Publicado em inglês no v. 38, n. 78 da revista Varia Historia – como parte do dossiê “Saberes en las Américas: Cruces, trayectorias y zonas de intercambio”, organizado por Andrés Vélez-Posada (Universidade EAFIT, Colômbia) e Mariana Labarca (Universidade de Santiago de Chile) –, o trabalho de Nydia Pineda de Ávila (Universidade da Califórnia, San Diego, Estados Unidos) e Thomás A. S. Haddad (Universidade de São Paulo) se centra em obras e tratados de Diogo Andrés Rocha (1607-1688) e Carlos de Sigüenza y Góngora (1645-1700).

Em um diálogo crítico com uma historiografia que interpretou os autores como distantes epistemologicamente e pouco se deteve nas escritas da história do Novo Mundo no século XVII, a autora e o autor procuram evidenciar proximidades entre Rocha e Sigüenza a partir do modo de escrever e entender a história humana e das Américas, bem do uso comum de ferramentas e recursos, como os conhecimentos astronômicos.

Ouvidor do vice-reinado do Peru, o criollo Andrés Rocha escreveu em 1681 o “Tratado unico, y singular del origen de los indios occidentales del Piru, Mexico, Santa Fe, y Chile”, cujo tema central era a origem dos povos americanos. Como mostram Pineda de Ávila e Haddad, Rocha buscava tornar os indígenas descendentes de linhagens e migrações bíblicas. No mesmo período, foi publicado o “Manifiesto filosófico contra los cometas despojados del imperio que tenían sobre los tímidos”, panfleto do também criollo e oficial colonial Sigüenza – que, uma década mais tarde, desenvolveu o assunto em um livro mais robusto, “Libra astronomica, y philosophica”. Discutindo os significados e simbolismos da aparição do astro, o autor se posicionava contra as interpretações que conectavam essas manifestações celestes a eventos catastróficos na cronologia da história humana.

Figura 1. “La fameuse Cométe de 1682 a commencée à paroître et a été observée à Paris dans l’observatoire Royal par le grand Cassini”.

A aproximação entre as obras ocorre de duas formas. Primeiramente, em um esforço de situar os escritos dos dois oficiais junto a discussões centrais dos séculos XVI e XVII. Por exemplo, demonstrando que a releitura de Andrés Rocha fazia parte de uma longa tradição em que autores tentavam universalizar e juntar a história dos ameríndios à dos europeus, como ocorria nas produções do Inca Garcilaso de la Vega (1609) ou de Juan de Solórzano Pereira (1648). O mais interessante, porém, é a minuciosa análise que a autora e o autor de um recurso metodológico compartilhado pelos textos utilizados: a utilização e a legitimação da astronomia no fazer histórico.

Nesse sentido, o livro de Sigüenza sobre os cometas era apenas parte de um projeto mais robusto do autor, em que fenômenos astrológicos distintos eram utilizados para reconstruir e universalizar a história humana. Ele concebia, assim, que, sob o mesmo céu, os diferentes povos do mundo interpretavam a seu modo esses eventos, mas que tinham uma experiência conjunta e poderiam, justamente por isso, estar sob uma mesma égide temporal.

O mundo colonial americano adentrava, assim, a história europeia e cristã – temática central de um livro anterior à “Libra”, chamado “Theatro de virtudes politicas” (1680). E não eram semelhantes os propósitos de Andrés Rocha, isso é, inscrever a história de sua pátria americana em uma origem cristã e comum ao mundo europeu? O artigo mostra que não deveria gerar surpresa no leitor a presença, no Tratado de Rocha, de uma comentando o fenômeno celestial. Em tal movimento, encontrava-se nada menos do que um recurso reconhecido e válido para escrever a história e recontar os passos da humanidade: a astronomia e seus mistérios e sinais celestes.

Uma das grandes contribuições do artigo é, justamente, historicizar a escrita e o fazer histórico de Rocha e Sigüenza, reconstruindo uma tradição literária seiscentista do Novo Mundo, na qual história, astronomia e astrologia não podem ser entendidas em separado. Estavam, isto sim, juntas e legitimavam projetos coloniais específicos e particulares. Ou seja, na história celeste e fantástica do cometa que cruzava os céus em meados do século XVII, estavam também a história de um mundo que se tentava entender e que buscava seu próprio espaço em meio à longa interpretação cristã e europeia. O Novo Mundo e seu modo próprio e particular de ver o céu, seus astros e cometas encontravam, assim, um lugar na história que se pretendia universal.

Referências

CAÑIZARES-ESGUERRA, J. Como escrever a história do Novo Mundo: Histórias, epistemologias e identidades no mundo atlântico do século XVIII. São Paulo: Edusp, 2011.

GRUZINSKI, S. Que horas são… lá, no outro lado? América e Islã no limiar da época moderna. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

SIGÜENZA Y GÓNGORA, C. Teatro de virtudes políticas que constituyen a un príncipe: advertidas en los monarcas antiguos del Mexicano Imperio, con cuyas efigies se hermoseó el Arco triunfal que la… Ciudad de México erigió para… recibimiento del… Virrey Conde de Paredes, Marqués de La Laguna… Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2005 [viewed 24 May 2023]. Available from: https://www.cervantesvirtual.com/nd/ark:/59851/bmcs4718

Para ler o artigo, acesse

PINEDA DE ÁVILA, N. and HADDAD, T.A.S. Writing the History of the New World into Universal History: Colonial Chronologies and Astral Knowledge in Late-Seventeenth Century Spanish America. Varia Historia [online]. 2022, vol. 38, no. 78, pp. 659-692 [viewed 23 May 2023]. https://doi.org/10.1590/0104-87752022000300003. Available from : https://www.scielo.br/j/vh/a/6TTZHxxGj8v6LDpbf3MVqcn/

Links externos

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Histórias de Cometas nas Américas – Thomás Haddad: https://www.youtube.com/watch?v=zMKZviW9GeA

Geopolítica Americana de los siglos XVI-XIX – GEOPAM (rede de pesquisa que deu origem ao dossiê em que foi publicado o artigo): https://www.geopam.org/

Nydia Pineda de Ávila – UC San Diego, Department of History: https://history.ucsd.edu/people/faculty/pineda.html

Petrus Albino de Oliveira – Facebook: https://www.facebook.com/petrus.deoliveira/

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

OLIVEIRA, P.A. Usos da história e da astronomia na legitimação de projetos coloniais nas Américas [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2023 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2023/05/24/usos-da-historia-e-da-astronomia-na-legitimacao-de-projetos-coloniais-nas-americas/

 

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