Pedro Demo, Professor Emérito, Universidade de Brasília (UNB), Brasília, DF, Brasil
Cristiano de Souza Calisto, Doutorando em Direitos Humanos e Cidadania, Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF, Brasil
A ideia de que a escola pública brasileira falha por desorganização, insuficiência de recursos ou por ausência de avaliação já não se sustenta como explicação primária dos baixos índices de aprendizagem. Ao contrário, o que se constata é que a “inépcia” escolar cumpre função estruturante em um modelo social que normaliza desigualdades.
No artigo A quem interessa uma escola tão inépta?, publicado no periódico Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação (vol. 33, no. 128, 2025), propomos uma leitura crítica dos dados educacionais com base em fundamentos epistemológicos e políticos, situando o IDEB e o IDH-M como indicadores que evidenciam os limites de uma política educacional tecnicista, burocratizada e alheia à realidade dos territórios mais empobrecidos.
A análise parte de um lugar incômodo: os dados não mentem, mas são incompletos. Avaliar é mais do que medir resultados — é confrontar projetos. Por isso, indagamos: o que revelam os dados quando confrontados com o projeto de educação que se tem?
A partir de uma leitura dialética, demonstramos que os indicadores atuais, embora úteis, não dão conta de capturar o real em sua complexidade. Mais grave ainda: tendem a encobrir a seletividade estrutural de um modelo que opera a exclusão como funcionalidade.
A escola “inépita” não é efeito colateral; ela é estratégia. No jogo das reformas educacionais, o que se amplia é o controle, a performatividade e a responsabilização individual (Han, 2017; Darder, 2015). O sujeito educador torna-se executor de metas, e o estudante, uma abstração estatística. A ideia de desaceleração da aprendizagem é aqui introduzida como categoria crítica, rompendo com a lógica deficitária e apontando para os efeitos concretos das políticas de desinvestimento, descontinuidade formativa e ausência de compromisso com o direito à educação como direito humano.
Como já afirmamos em outras textos (Demo, 2004; Demo, Calisto, 2025), qualidade se escreve com política, e não com rankings. Quando não há projeto de formação docente que seja integrado, territorializado e emancipador, o que se perpetua é o ciclo da precariedade, especialmente nos espaços marcados por desigualdades raciais, de classe e de gênero. Na interseção entre dados, sujeitos e territórios que ancoramos nossas análises, recusando a neutralidade estatística e reivindicando o dado como denúncia.
É nesse cenário que Paulo Freire (1996) nos interpela: educar é um ato político. Não há neutralidade na gestão do IDEB. Não há neutralidade na escolha dos conteúdos cobrados. Não há neutralidade na exclusão de políticas intersetoriais e na responsabilização do professor por resultados que dependem de múltiplas determinações. A crítica à “inépcia” escolar, portanto, não é dirigida aos sujeitos da escola, mas às estruturas que organizam a escola para fracassar.
Ademais, defendemos que as reformas educacionais devem superar o viés economicista e performático. Isso implica reconectar o pedagógico ao ético, o currículo ao território, a avaliação ao projeto político-pedagógico. Só assim será possível conceber uma escola que ensine, sim — mas que, sobretudo, forme sujeitos históricos, críticos e autônomos.
A escola pública de qualidade não é utopia, é disputa. Nosso artigo é uma contribuição para esse enfrentamento.
Para ler o artigo, acesse
DEMO, P. and CALISTO, C.S. A quem interessa uma escola tão inepta? Ensaio: Avaliação E Políticas Públicas Em Educação [online]. 2025, vol. 33, no. 128, e0254916 [viewed 8 July 2025]. https://doi.org/10.1590/S0104-4036202500330491. Available from: https://www.scielo.br/j/ensaio/a/tgWMwvdHpS7Rzk8mK9rtWjv
Referências
DARDER, A. Reinventing Paulo Freire: A pedagogy of love. New York: Routledge, 2015.
DEMO, P. and CALISTO, C.S. Direitos humanos iguais e diversos: desafios do igualitarismo. São Paulo: Paco e Littera, 2025.
DEMO, P. Educação e qualidade: o direito de aprender. Campinas: Autores Associados, 2004.
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1987.
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
HAN, B.C. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.
Links externos
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Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação
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