Revisando a horizontalização – o desafio da análise da Política Externa Brasileira: entrevista com Rogério Farias e Haroldo Ramanzini Jr.

Aline Chianca Dantas, membro do corpo editorial da Revista Brasileira de Política Internacional, RBPI – e doutoranda em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília, UnB, Brasília, DF, Brasil

rbpiA horizontalização da política externa brasileira, entendida como maior participação dos cidadãos no campo político, é um assunto que vem tendo destaque em análises recentes da política exterior do Brasil, problematizando o papel do Itamaraty frente a esse processo de abertura à sociedade. Nos trabalhos sobre o tema, existem perspectivas mais e outras menos otimistas sobre o processo de democratização da política externa do Brasil. Exemplo dessa segunda vertente é o artigo “Revisando a horizontalização: o desafio da análise da Política Externa Brasileira”, publicado na edição 2/2015 da Revista Brasileira de Política Internacional – RBPI, de autoria de Rogério de Souza Farias, pesquisador da Universidade de Chicago, e de Haroldo Ramanzini Júnior, professor da Universidade Federal de Uberlândia.

Nesse artigo, os autores buscam contribuir com aspectos teóricos e metodológicos relativos ao processo de análise da participação de diferentes atores na política externa brasileira, de modo a dar diretrizes para a superação dos problemas existentes na literatura corrente sobre o assunto. O argumento desenvolvido no referido trabalho é que a democratização do regime político não levou, necessariamente, ao mesmo processo na arena de tomada de decisão. Sobre esse estudo em torno da horizontalização da política externa brasileira, os autores concederam entrevista a Aline Chianca Dantas, doutoranda em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília e membro do corpo editorial da Revista Brasileira de Política Internacional – RBPI.

 

1. Refletindo sobre a base empírica da análise de horizontalização da política externa brasileira, quais casos apresentados pela literatura como exemplos de democratização da política externa vocês considerariam mais relevantes? De maneira sucinta, como vocês os analisariam à luz dos pontos apresentados no artigo?

No artigo, a nossa preocupação, ao examinar o argumento de horizontalização da política externa brasileira, foi identificar seus contornos conceituais precisos e identificar os métodos como ele poderia ser verificado empiricamente. A horizontalização é um argumento sobre o processo decisório da política externa e indicaria o aumento de atores na arena decisória – tanto do Estado como da sociedade. Subjacente à tese está a noção de que, no passado, a arena decisória estava limitada predominantemente ao Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty). Outra preocupação da literatura é explicar tal fenômeno. Há uma variedade de fatores internos e externos apontados, da democratização do Brasil, na década de 1980, para a integração econômica ocorrida ao final do século XX.

É inviável abranger toda a amplitude de arenas decisórias no âmbito da política externa. Isso ocasiona desafios para o argumento de “horizontalização”. Cada assunto tem um padrão decisório distinto, e identificamos, na nossa pesquisa, casos em que houve até maior centralização em poucas instituições se comparado com a situação anterior ao regime militar – o oposto do esperado. Somente pela consideração que alguns tópicos são mais importantes do que outros – e mais representativos da inserção internacional brasileira – poderíamos, a partir de casos particulares, promover generalizações. Essa seleção, ademais, é sempre passível de discussão.

No nosso artigo, apresentamos o tema da participação brasileira em negociações comerciais internacionais como caso relevante para examinar a tese de horizontalização – ainda que não exista, da nossa parte, concordância com a tese de que toda a inserção internacional do país possa ser encaixada nos moldes conceituais de um modelo “horizontalizado” ou “verticalizado”. Ele atinge três pré-requisitos para tanto. O primeiro é a comparabilidade. A tese da horizontalização trabalha com mudanças – o objeto observado passa por alterações entre um primeiro momento e um segundo. Os dois marcos são essenciais para a articulação do argumento, pois se falamos que “atualmente” há mais atores no processo decisório do que “anteriormente”, devemos definir com precisão essas duas temporalidades, pois é a partir delas que o processo decisório será examinado. Isso é importante, pois a arena decisória de um determinado tópico deve existir nos dois períodos examinados. Vamos pensar, por exemplo, as discussões do marco regulatório internacional sobre a Internet. Podemos falar que hoje a arena decisória da política externa brasileira no assunto conta com mais atores do que no passado, entendida como o período anterior à democratização? A pergunta não pode ser respondida pelo simples fato de esse tópico não ter existido de tal forma no momento inicial de observação. Não há comparabilidade. A progressiva expansão da agenda internacional no século XX, assim, não deve ser compreendida automaticamente como causa de uma suposta elevação de atores. O caso das negociações comerciais multilaterais, todavia, cumpre o pré-requisito, pois desde 1946 o Brasil atua nesse domínio, o que permite o estudo do processo decisório desde essa época.

O segundo pré-requisito é a relevância. Os temas da política externa brasileira não têm a mesma prioridade e tampouco os decisores dedicam a mesma proporção de tempo para cada um. Há, certamente, uma hierarquia, ainda que não seja expressa em pronunciamentos oficiais. Mas em qualquer análise, mesmo sobre períodos anteriores, temas econômicos, mormente os de natureza comercial, têm elevada importância.

O terceiro pré-requisito é a natureza do caso. O argumento da “horizontalização” indica que os processos de globalização e integração econômica são dois dos principais elementos causais na elevação do número de atores no processo decisório da política externa brasileira. Por conseguinte, as arenas mais sensíveis a essas dinâmicas deveriam ser as que demonstram maior número de atores. As que definem a posição do Brasil em negociações comerciais multilaterais encaixam-se nessa situação hipotética,. Ao criar um ambiente de integração aos mercados internacionais, há o potencial de afetar o bem-estar de milhões de cidadãos, muitos de forma negativa, o que enseja grande mobilização destes para influenciar a forma como o país se porta plano negociador. E pelo fato de as negociações terem progressivamente expandido o seu escopo, abrangendo temas que vão de propriedade intelectual a investimentos relacionados ao comércio internacional, estaríamos diante de pressões para que órgãos do governo aumentassem sua influência sobre o processo decisório. É, portanto, um “hard case”, pois se a visão de “horizontalização” não conseguir ser explicativa no caso, provavelmente não poderá ser generalizada.

2. Em relação a quais temas vocês conseguiriam visualizar maior e menor tendência à horizontalização do processo decisório da política externa brasileira? Por quê?

É uma pergunta difícil, pois exige pesquisa prévia sobre um conjunto de temas e períodos, de modo a ter algum parâmetro substantivo e de diferenciação de arenas decisórias, que permita falar que um ou outro tema tem maior ou menor tendência ‘a horizontalização. Não fizemos essa pesquisa. Mas, para se pensar em uma resposta, é possível considerar, na linha do que discutimos no artigo, que pode haver oscilações no nível de horizontalização em um mesmo tema e em uma mesma arena decisória. Por exemplo, em negociações comerciais multilaterais. Em uma mesma Rodada, o processo pode ser mais horizontal durante a fase de definição do mandato negociador e pode caminhar para um sentido de maior centralização no momento de definição dos compromissos do país. Eventualmente, o inverso também pode ocorrer. De todo modo e pensando de um ponto de vista geral, aspectos como a forma de organização dos atores da sociedade e sua capacidade de influência, o grau de internacionalização do tema, a forma de distribuição de interesse e informação entre os atores governamentais, o conhecimento técnico e o grau de mobilização e acompanhamento em torno de um tema normalmente balizam a participação dos atores no processo decisório.

3. Considerando a limitação das fontes que identificam a horizontalização da política externa brasileira, notadamente dos documentos legais e entrevistas, quais seriam as alternativas viáveis para desenvolver uma melhor análise sobre o tema?

A análise empírica sobre a horizontalização deve se dar de acordo com fontes. São por intermédio delas que apreendemos, ainda que de forma incompleta, se o processo decisório evoluiu para uma pluralidade de atores públicos e privados e se, caso isso seja verificado, a configuração teve algum efeito sobre a resultante da política externa brasileira. Registros mais contemporâneos são mais fáceis de serem coletados, e muitos estudos acabam tendo uma composição desbalanceada, pois não apresentam o mesmo nível de atenção para as evidências do primeiro período, que serve como linha de base.

A questão não seria identificar quais as fontes adequadas, mas sim apreciá-las com cautela, analisando suas limitações. O usual, atualmente é utilizar a legislação ou entrevistas. Os dois são relevantes, mas devem ser analisados de forma crítica. A legislação indica uma intenção e não necessariamente corresponde à realidade. Identificar a elevação de órgãos formalmente com mandato em temas internacionais não quer dizer que efetivamente atuam de tal forma ou que, no passado, outras instâncias não tinham responsabilidade equivalente sem haver portarias e leis indicando tal situação. A distância entre o mundo formal jurídico e o cotidiano da administração pública é aspecto corriqueiro que não deve ser ignorado.

Já o conteúdo das entrevistas não deve ser aceito por seu valor de face e sem a identificação dos vieses decorrentes da posição e dos interesses institucionais dos entrevistados. Como observamos no artigo, mesmo servidores do Itamaraty abraçam a retórica da democratização como forma de elevar a legitimidade de decisões realizadas sem influência externa; já atores de outras instâncias governamentais têm a tendência de exagerar sua influência. Não se deve esquecer a temporalidade das fontes. As relações entre os órgãos do Estado e a sociedade são extremamente fluidas. As percepções de um determinado ator apresentadas em uma entrevista não podem ser generalizadas para períodos longos de tempo.

Não existe fonte perfeita. Daí a necessidade de sempre utilizar múltiplas referências, tanto do ponto de vista quantitativo como qualitativo, e sempre questionando se elas são suficientes para embasar nossas conclusões. Isso deve ser feito utilizando técnicas rigorosas de análise e sempre com o caráter limitado delas para permitir generalizações.

4. Como vocês avaliam o processo de horizontalização da política externa nos governos Lula da Silva e Dilma Rousseff?

O tema não foi abordado no artigo a partir dessa perspectiva. Avaliar o processo de horizontalização, como comentado acima, implica uma definição mais precisa do termo, um parâmetro de comparação, a identificação de uma arena e a análise de um processo no tempo. De todo modo, é possível observar, principalmente desde o início das negociações em torno da então agenda da ALCA, um debate crescente no âmbito da sociedade e do Estado sobre a formulação da política externa brasileira, os atores, preferência e agendas ali presentes. No caso dos últimos anos, observa-se a ampliação das temáticas com interface internacional, seja em função da ampliação de acordos com atores e instituições externas envolvendo ações e estratégias de governos, como é o caso de alguns acordos no âmbito do Mercosul, seja em função de processos e dinâmicas mais estruturais que se vinculam com tendências e forças que buscam maior homogeneização de temas e legislações domésticas, inevitavelmente colocando o âmbito e os compromissos internacionais como um parâmetro condicionador de políticas em diferentes áreas. Todos esses processos talvez indiquem o aumento real de atores na arena decisória e uma ampliação do nível de atenção e acompanhamento dos atores governamentais e não governamentais em relação às questões internacionais. Mas como indicamos nas perguntas anteriores, devemos ter alguns cuidados teóricos e metodológicos para se chegar a essa conclusão.

Mini currículo dos autores:Rogerio

Rogério de Souza Farias é doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2012). Atualmente é visiting scholar do Lemann Institute for Brazilian Studies e associate do Center for Latin American Studies da Universidade de Chicago.

 

HaroldoHaroldo Ramanzini Júnior é doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), com ênfase em Política Internacional e Professor Adjunto de Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) onde é Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (PPGRI-IEUFU).

Para ler o artigo, acesse:

FARIAS, R. S., and RAMANZINI JUNIOR, H. Reviewing horizontalization: the challenge of analysis in Brazilian foreign policy. Rev. bras. polít. int. [online]. 2015, vol.58, n.2, pp. 5-22. [viewed 4th February 2016]. ISSN 1983-3121. DOI: 10.1590/0034-7329201500201. Available from: http://ref.scielo.org/95h2bw

Link externo:

Revista Brasileira de Política Internacional – RBPI – www.scielo.br/rbpi

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

DANTAS, A. C. Revisando a horizontalização – o desafio da análise da Política Externa Brasileira: entrevista com Rogério Farias e Haroldo Ramanzini Jr. [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2016 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2016/02/22/revisando-a-horizontalizacao-o-desafio-da-analise-da-politica-externa-brasileira-entrevista-com-rogerio-farias-e-haroldo-ramanzini-jr/

 

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