Por Jelson Roberto de Oliveira
Nietzsche certamente é um dos filósofos mais sedutores, polêmicos e instigantes da história. Não é raro encontrar quem, mesmo sem tê-lo lido, já tenha ouvido falar de sua obra, objeto de amor ou de uma de suas variações, o ódio. O problema dessa “popularização” é que, muitas vezes, ela não está amparada numa leitura e num conhecimento mais aprofundado da obra filosófica nietzschiana. Nos tempos das frases de efeito postadas nas redes sociais é comum que a divulgação filosófica do pensamento de Nietzsche seja empobrecida e vulgarizada na mesma medida em que é difundida.
Eis o primeiro desafio de um estudioso de Nietzsche: é preciso prescindir dos clichês e levar o filósofo mais a sério. Para isso, não há outro caminho: deve-se começar a ler a sua obra densa, poética e, por vezes, oracular, para aos poucos inteirar-se das fases e nuances de sua produção, das fontes e das inúmeras influências de seu pensamento, do estilo e das formas simbólicas de sua escrita. Qualquer um que assim o fizer logo descobrirá um autor cáustico, crítico das principais bases da cultura ocidental, mas ao mesmo tempo preocupado com todas as coisas que tornam a vida humana tão valiosa. Esse tom crítico e ao mesmo tempo cálido, que supera o pessimismo para celebrar a vida com todas as suas forças, aparece nas três fases de seu pensamento: os tempos de juventude, marcados ainda pela influência das leituras de Schopenhauer e da amizade com Richard Wagner, costumeiramente chamada de fase da “metafísica de artista”; o período intermediário, no qual o filósofo encontra sua linguagem própria e experimenta uma forma de reflexão sobre as coisas humanas levando em conta o papel da ciência e da história como motes de crítica à metafísica; e, finalmente, a fase da maturidade, onde aparecem os grandes conceitos do além-do-homem, da morte de Deus, da vontade de poder e do niilismo.
O artigo é resultado de uma pesquisa que vem sendo desenvolvida na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e que tenta realizar essa tarefa de leitura, análise crítica e debate da filosofia nietzschiana. A pesquisa conta com a participação de doutorandos, mestrandos, alunos de graduação e também alunos de ensino médio que participam de programas de bolsas de iniciação científica. O foco central da pesquisa são os escritos do período intermediário da obra do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, que abrangem um período de tempo que vai desde 1876, logo após o rompimento com Richard Wagner, até 1882. Nesses seis anos de produção, Nietzsche publicou três obras: Humano, demasiado humano (dois volumes), Aurora e A Gaia Ciência. O eixo articulador dessas obras é a tentativa de derrocada da metafísica através do procedimento científico com o fim de mostrar como os valores morais, estéticos e religiosos teriam nascido de necessidades humanas. Contra a filosofia metafísica, a religião cristã e o romantismo, Nietzsche dá preferência ao procedimento histórico (que conta a origem humana de todos os idealismos) e fisiopsicológico (pois é no corpo que o filósofo vislumbra o berço das necessidades que fundam a metafísica).
Trata-se da análise implementada por Nietzsche em relação à religião e, mais especificamente, a crítica ao conceito de ascetismo e santidade que, para o filósofo alemão, não passariam de um exercício de poder do indivíduo sobre si mesmo, como uma “ânsia de domínio” que, pela ausência de “objetos” externos, acaba se voltando contra si mesmo, pela via da “tiranização de partes de seu próprio ser”, resultando no desprezo e no escárnio do homem consigo mesmo, sentimento que redunda na moralidade da culpa. Para Nietzsche, esse expediente torna a religião algo realmente nocivo para a cultura, porque embrutece o ser humano e gera o adoecimento do homem como resultado daquilo que ele é.
O texto demonstra como a estratégia histórico-fisiopsicológica utilizada por Nietzsche em Humano, demasiado humano leva não só clareza das bases que fundam os mecanismos utilizados pela religião, mas, sobretudo, como esse novo método filosófico conduz à tese da inocência do ser humano e ao consequente alívio do homem em relação ao peso que ele sente sobre si mesmo, restabelecendo a leveza e, até mesmo, certa irresponsabilidade pela via da afirmação da necessidade de todas as coisas e da crítica à ideia de livre-arbítrio, que tinha sido comum ao Nietzsche, discípulo de Schopenhauer.
De acordo com Oliveira, de um lado qual é e como se desenvolve o procedimento filosófico de Nietzsche nesse período intermediário e, de outro, exemplifica a aplicação dessa metodologia sobre o elemento religioso. Tanto a história, quanto a fisiologia e a psicologia passam a ser elementos estruturadores da análise das coisas humanas e da origem humana de todas as coisas (incluídas aquelas que, do ponto de vista cultural, foram consideradas do ponto de vista metafísico, ou seja, tratadas como milagrosas e sagradas). Isso significa que “Humano, demasiado humano” é uma obra essencial para a compreensão do pensamento nietzschiano: nele começa a ganhar corpo o novo método filosófico que será consagrado por Nietzsche em obras posteriores com o dístico de método genealógico. Esta obra guarda, portanto, de forma embrionária, o procedimento e os temas que serão abordados em “Para a genealogia da moral”.
O artigo é só um exemplo de uma produção que envolve vários artigos, livros, dissertações, teses, trabalhos de conclusão de curso, além de apresentação de seminários e congressos. No fim, trata-se de transformar a sedução provoca por Nietzsche num trabalho sério de pesquisa filosófica.
Para ler o artigo, acesse:
OLIVEIRA, Jelson Roberto de. Ascetismo e inocência: a questão da religião no Humano, demasiado humano de Nietzsche. Cad. Nietzsche, São Paulo, n. 33, 2013. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2316-82422013000200010&lng=en&nrm=iso>. http://dx.doi.org/10.1590/S2316-82422013000200010.
Link relacionado:
Cadernos Nietzsche <http://www.scielo.br/cniet>
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