Entrevista com José Miguel Nieto Olivar

Por Gabrielle Adabo

Ent_CPA_Jose_Miguel_Nieto_Olivar_fotoAlteridade, gênero, sexualidade e afeto são as categorias que orientam a discussão proposta pelo número 41 do periódico Cadernos Pagu. Textos que tratam das relações e articulações entre essas categorias, além de artigos e resenhas, compõem a edição. O debate objetiva abordar, entre outras questões, a utilização de tais categorias, frequentemente vinculadas a camadas médias urbanas, em pesquisas com outros grupos sociais, dentre eles indígenas, ribeirinhas e rurais.

Criado em 1993, o Cadernos Pagu é uma publicação centrada na problemática de gênero, produzida pelo Núcleo de Estudos de Gênero Pagu da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), centro que reúne pesquisadores e desenvolve abordagens interdisciplinares em torno dessa temática. A atual edição dos Cadernos Pagu inicia as comemorações dos 20 anos do Núcleo e do próprio periódico, completados em 2013.

Em entrevista, José Miguel Nieto Olivar, doutor em antropologia social e pesquisador nos temas de gênero, mercados do sexo, ilegalidades e territórios de fronteira, fala sobre a escolha do assunto para compor este debate e a importância da discussão sobre as categorias envolvidas no universo do pesquisador para produzir sentidos sobre o objeto de estudo.

1) Por que foram escolhidas as categorias alteridade, gênero, sexualidade e afeto como tema para debate na edição 41 dos Cadernos Pagu?

Assuntos como os afetos e as sexualidades estão no centro de tensões constituintes do conhecimento antropológico. De um lado, a tensão entre natureza e cultura, entre aquilo que podemos pensar como produzido ou, principalmente, orientado por aspectos tidos como naturais do corpo humano e aquilo que é principalmente produto da história, das condições econômicas ou das capacidades de inventividade das pessoas em diversas sociedades. Outra tensão que dá sentido à formulação desse debate tem a ver com a relação entre estrutura social e capacidade de agência (agency). Quando realizamos um ato qualquer, na nossa vida cotidiana, quando escolhemos uma pessoa x com quem namorar e não outra, quando sentimos um afeto x de uma determinada maneira ou não sentimos nada… Que tanto isso é uma resposta a condições sociais e materiais, que tanto obedece a “esquemas conceituais” (como diria o antropólogo norteamericano Marshall Sahlins), a “estruturas de emoções” (Raymond Williams), a habitus sociais incorporados (Pierre Bourdieu), ou que tanto há nesse ato, nesse afeto, nesse sentir, de invenção, de construção particular, situacional, performativa? Ou, dito de outro modo, como lidamos com aquilo que sentimos como “natural”? Como praticamos atos e experiências que mudam ou reorientam aquilo que seguimos sem muito pensar? Essa tensão se relaciona com outras no processo de  perguntar-se pelos afetos e pelas sexualidades em diversos grupos sociais: a tensão entre universalismos e diversidades sociais, grupais ou particulares. O que é universal às sociedades humanas? O que é particular de cada experiência social? Como se estabelecem as relações e os fluxos entre formas mais generalizadas e produções mais particulares? Qual é o limite do particular e qual o do universal? A antropóloga inglesa Marilyn Strathern, de grande influência na antropologia brasileira, pergunta se será que podemos continuar pensando que os problemas das sociedades humanas são universais e a diversidade está apenas nas formas de resolvê-los, ou se a própria formulação dos problemas não é já produto das diversas experiências sociais? Dimensões da vida social como os afetos e as sexualidades, bem como as relações de gênero, têm sido marcados por diversas teorias científicas e por diversos saberes sociais que tendem a imprimir neles marcas de universalidade. Muitas vezes se pensa que “o amor”, por exemplo, é algo universal, uma matéria das profundezas da subjetividade que conforma a nossa experiência humana para além das diferenças sociais e históricas; algo que todos/as sentimos ou deveríamos sentir de mais ou menos as mesmas maneiras, ainda que aceitemos que possa variar nas expressões. De maneira semelhante pode acontecer com “o sexo” ou “a sexualidade”, vista por diversos saberes como uma dimensão distintiva da humanidade, como algo mais ou menos definível que todos os seres humanos temos e que devemos viver e gozar. Mas, será? O que acontece se comparamos experiências ou grupos sociais diversos? Que tão diferentes e que tão semelhantes podem ser? Em que aspectos concentramos mais a nossa atenção, ou quais temos mais disposição e mais ferramentas para ver: nas semelhanças ou nas diferenças? Essas categorias foram colocadas juntas, e assim escolhidas, para estimular a nossa reflexão sobre essas tensões a partir da experiência de pesquisadores diversos que tenham realizado trabalho com grupos sociais que costumam ser imaginados como significativamente diferentes (a “nós”), ou sobre os quais tem se construído narrativas acadêmicas de intensa diferenciação. Por outro lado, nos perguntamos pela duração, a capacidade explicativa ou descritiva dessas categorias. Que significa aludir a afetos, sexualidade e gênero em diversos grupos humanos? Fazem parte de condições humanas universais que mudam apenas de expressão e de nominação em sociedades diferentes? Que práticas, experiências, saberes e narrativas incluímos dentro da categoria sexualidade quando estudamos “sexualidade”? Por que essas e não outras? Que relação tem “sexualidade” com formas diversas de poder, de saber e de organização social? Que estamos entendendo por “afetos” ou por “amor” que nos permite usar essa categoria como ferramenta analítica em diversas culturas? Ou não deveríamos usá-la? Que tanto essas categorias estão marcadas e definidas pelas experiências sociais de classe, de cor, de gênero dos pesquisadores e são assim usadas, como poderia sugerir Elizabeth Povinelli, como ferramentas de colonização liberal nisso que de maneira insuficiente chamamos de “sociedades tradicionais”?

2) A questão da alteridade vem da antropologia e boa parte dos textos dessa edição têm essa disciplina como base metodológica. Como a visão antropológica dessas categorias influencia o debate?

A “busca” pela alteridade é fundacional na antropologia. Mas isso não implica, necessariamente, percorrer milhares de quilômetros e assumir grandes aventuras linguísticas; afinal, a distância é absolutamente relativa e a alteridade, quando quer ser vista, pode ocupar formas ou espaços microscópicos. A alteridade está nas formas de pensamento, nas sensibilidades dos nossos corpos, nos arrazoados possíveis para explicar ou produzir fenômenos sociais, naturais, biológicos etc. Às vezes esse ir implica olhar para um argumento desde um outro lugar, mergulhar nas formas como uma pessoa próxima compreende e narra as suas práticas sexuais, ou nas formas nas quais um juiz ou um policial produz um documento que implica anos de prisão para alguém e não entender tudo isso apenas desde imagens soltas e preconcebidas ou desde interpretações universalistas. Para uma boa parte da antropologia, chamar a atenção sobre a alteridade é importante. Ou melhor, como resultado do nosso trabalho, para muitos de nós o conhecimento e a defesa da alteridade, em termos de processos sociais de diferenciação, é um projeto acadêmico e político. Acreditamos que a antropologia pode ajudar a ampliar os limites imaginativos sobre o mundo, sobre as pessoas; fazendo circular, explicando e comparando vozes, pensamentos, experiências, lógicas e corpos diversos. Algumas abordagens antropológicas buscam, nesse processo, produzir deslocamentos e problematizações em pontos de vista excessivamente cristalizados (também acadêmicos) e chamam a atenção sobre práticas e políticas que, bem intencionadas, podem ora passar por cima e violentar grupos inteiros de pessoas, ora ser ineficazes nos seus propósitos.

3) Os artigos selecionados para compor o debate desta edição dos Cadernos Pagu tratam dessas categorias em comunidades como indígenas, ribeirinhas, quilombolas, extrativistas, populações rurais, enfim, grupos que estão fora das camadas médias urbanas. Qual a importância de se expandir tal discussão para esses outros grupos? Quais os principais desafios dos pesquisadores que trabalham com essas categorias nesses grupos?

“Camadas médias urbanas” é uma categoria de produção de diferença, de distinção; é também uma maneira de chamar aquele espaço social, simbólico, ao redor do qual giram e se naturalizam muitos dos interesses no mundo geralmente denominado como “ocidental contemporâneo”. Assim, essa ideia, usada para marcar diferenças, tanto quanto “os índios” ou “os negros”, pode ser também um ponto de vista naturalizado por diversas pessoas (em alguns casos, também acadêmicos) como neutral e, às vezes, como parâmetro para determinar o desejável da vida social, moral, política ou econômica. Quiçá um dos interesses do debate seja justamente chamar a atenção sobre isso, sobre como nossas experiências sociais podem ser discretamente vertidas na produção dos conceitos acadêmicos que usamos, sobre sua distância quando colocadas em jogo com realidades sociais diversas ou, invertendo o argumento e seguindo a proposta de Marshall Sahlins em seu artigo clássico “O pensamento burguês”, sobre a relativa consistência da distinção e separação produzida pela condição acadêmica de camada média. Nesse sentido, o aporte de Luís Fernando Dias Duarte é fundamental. Outro assunto que nos interessa no debate é o seguinte. Hoje, na antropologia brasileira, estão se apresentando cruzes de recortes, de universos ou de grupos que provocam perguntas novas ou novas formas de assumir perguntas consolidadas e que têm no gênero e nas sexualidades âmbitos de especial estímulo e interesse. Estamos em um momento em que os e as pesquisadoras não apenas vão trabalhar, por exemplo, em uma comunidade indígena mais ou menos isolada e cuja imagem é apresentada como separada dos processos de Estado ou das sociedades não indígenas. Trabalhos nesse debate, como o de Patrícia Rosa, implicam uma tensão importante no seu campo de estudos, ao inserir perguntas clássicas da etnologia em contextos de intensa circulação territorial indígena intra e transfronteiriça, de sobreposições densas e complexas de lógicas sociais, morais e religiosas, de produções de parentesco e corporais em relação com “brancos”, estrangeiros, “evangélicos”, missionários, etc. Do mesmo modo, começamos a ter mais estudos que se perguntam sobre o lugar das sexualidades (erotismo, homossexualidades, prazer) ou da prostituição, ou dos afetos em grupos sociais como os aqui representados (veja a contribuição da Claudia Fonseca, Mara Viveiros, Dany Mahecha ou da Vanessa Lea), ao tempo que temos reivindicações de “direitos sexuais” ou LGBT, ou de “empoderamento” feminino em grupos e organizações indígenas, ribeirinhas ou quilombolas. Nascentes movimentações das mulheres Xicrin no Xingu ou os já consolidados espaços políticos de mulheres no Alto Rio Negro são exemplos importantes desses processos. Nesse sentido, a contribuição de Elizabeth Povinelli nesse debate é fundamental, pois ela transita entre pesquisas que no Brasil chamaríamos de etnológicas (indígenas) e pesquisas e ativismos LGBT em grandes cidades dos Estados Unidos. Nesses trânsitos, Povinelli percebe que discursos “genealógicos” e “autológicos” (e seus desdobramentos em termos de amor, afetos, sexualidades e igualdades) são divisores do mundo, produtores de verdade e de desigualdade conceitual. Como é que os e as antropólogas que trabalham com esses grupos ou essas sociedades lidam com assuntos que desde um certo referencial teórico podemos chamar de sexualidade, gênero e afetos? Que ferramentas usam? Que tipos de conexões estabelecem? Ainda mais, que lugar ocupam esses temas na sua produção? O que o debate buscava, e busca, é também um espaço de diálogo ou de discussão, como o oferecido por Cecilia McCallum, de cruze de olhares e de conceitos que possam, também, enriquecer e abrir novos caminhos nos estudos de gênero.

4) Como a categoria de gênero, especificamente, que tem um histórico de origem no movimento feminista, se insere nesse debate e dialoga com as demais categorias?

Gênero resulta especialmente importante para nós. Ideias como “patriarcado”, “opressão” ou “dominação masculina” são às vezes usadas como explicações englobantes, correndo o risco de, em determinados casos, apagar complexas dinâmicas de poder –e de agenciamentos- nas quais gênero se articula com outras importantes diferenças como classe, etnicidade, “raça”, geração, etc. Ainda mais, quando reproduzidas capilarmente em/sobre contextos populares, rurais, negros e indígenas, essas categorias, às vezes associadas a ideias jurídico-políticas como “violência contra as mulheres” ou como “igualdade de gênero”, podem ter efeitos não previstos nem desejados. Em que termos devemos então falar de gênero quando transitamos entre diversidades sociais? Que noções de gênero resultam mais proveitosas? É possível pensar em “gênero” também como um dispositivo de controle e de disciplinamento perante a alteridade?

5) O pesquisador, diante do grupo pesquisado, muitas vezes se vale de categorias já estabelecidas, como estas que fazem parte do debate, para analisar as relações entre os indivíduos. Há casos nos quais essas categorias não se bastam por si sós para explicar o objeto de estudo e é preciso inter-relacioná-las ou mesmo reformulá-las?

Talvez o ideal fosse  levar a campo essas categorias já estabelecidas, como ferramentas provisórias, para que  entrem em diálogo com outras, principalmente, com ideias, noções, categorias ou lógicas que provêm do próprio campo; com os dados, com as relações que ali vemos e que descrevemos. É importante que as categorias ou conceitos teóricos não apenas sirvam para explicar em “nossos termos” uma realidade social outra; do mesmo modo, é importante que essa é uma crítica já feita por Bruno Latour, entre vários/as outros/as- os dados empíricos não sejam produzidos, usados e forçados para sustentar explicações teóricas ou posições políticas anteriores. Pelo contrário, o ideal seria que entre dados empíricos e teoria se dê um diálogo de mútua afetação. É um desejo que não apenas a realidade estudada seja “explicada” pela teoria, mas que a teoria seja “iluminada”, afetada, transformada pelos novos dados. Finalmente, trata-se de tentar não aprisionar as formas locais ou “nativas” de vida e de pensamento em categorias previamente construídas.

Para ler os artigos, acesse:

POVINELLI, Elizabeth A. As quatro figuras da “sexualidade” nos colonialismos de povoamento. Cad. Pagu [online]. 2013, n.41 [citado 2014-07-31], pp. 11-18. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332013000200002&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 0104-8333. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-83332013000200002.

DUARTE, Luiz Fernando Dias. Aonde caminha a moralidade? Cad. Pagu [online]. 2013, n.41 [citado 2014-07-31], pp. 19-27. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332013000200003&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 0104-8333. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-83332013000200003.

FONSECA, Claudia. Sexualidade, gênero e afeto nos hospitais-colônias de hanseníase. Cad. Pagu [online]. 2013, n.41 [citado 2014-07-31], pp. 29-40. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332013000200004&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 0104-8333. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-83332013000200004.

VIGOYA, Mara Viveros. Alteridad, género, sexualidad y afectos: reflexiones a partir de una experiencia investigativa en Colombia. Cad. Pagu [online]. 2013, n.41 [citado 2014-07-31], pp.41-52 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332013000200005&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 0104-8333. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-83332013000200005.

MCCALLUM, Cecilia. Nota sobre as categorias “gênero” e “sexualidade” e os povos indígenas. Cad. Pagu [online]. 2013, n.41 [citado 2014-07-31], pp. 53-61. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332013000200006&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 0104-8333. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-83332013000200006.

RUBIO, Dany Mahecha. Sexualidad y afecto entre los macuna y los nükak, pueblos de la amazonia colombiana. Cad. Pagu [online]. 2013, n.41 [citado 2014-07-31], pp. 63-75. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332013000200007&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 0104-8333. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-83332013000200007.

ROSA, Patrícia Carvalho. Romance de primas com primas e o problema dos afetos: parentesco e micropolítica de relacionamentos entre interlocutores tikuna, sudoeste amazônico. Cad. Pagu [online]. 2013, n.41 [citado 2014-07-31], pp. 77-85. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332013000200008&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 0104-8333. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-83332013000200008.

LEA, Vanessa R.. O som do silêncio (Paul Simon). Cad. Pagu [online]. 2013, n.41 [citado 2014-07-31], pp. 87-93 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332013000200009&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 0104-8333. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-83332013000200009.

Link relacionado:

Cadernos Pagu<http://www.scielo.br/cpa/>

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

Entrevista com José Miguel Nieto Olivar [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2014 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2014/08/15/entrevista-com-jose-miguel-nieto-olivar/

 

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