Por Nelson Sanjad
O novo número do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas apresenta um dossiê que incentiva a aproximação de diversas áreas, como história, ciência, técnica, comunicação e arte. Organizado por Ana Maria Mauad (Universidade Federal Fluminense) e Marcos Felipe de Brum Lopes (Instituto Brasileiro de Museus), o dossiê “Imagem, História e Ciência” reúne dez textos sobre diversos assuntos, cobrindo um período que vai do século XVI ao XXI, mas que tem em comum a análise de imagens enquanto ‘representação’. Desenhos, pinturas, gravuras, fotografias e filmes foram perscrutados nos seus significados e discursos, assim como fontes textuais e o instrumental teórico associado à produção e ao estudo de imagens. Segundo os organizadores, os textos “buscam levantar questões teórico-metodológicas que envolvem a produção de conhecimento com imagens nos campos das ciências humanas”.
Nesta entrevista, os organizadores respondem a algumas questões pertinentes à pesquisa sobre imagens – enquanto objeto de investigação multidisciplinar – e ao crescente interesse que o assunto vem despertando no Brasil. Ambos têm vasta experiência na investigação e atuam em reconhecidos centros de pesquisa.
1) Há interesse crescente de pesquisadores com distinta formação pela análise de imagens no tempo histórico. Quais as possibilidades e os limites nesse tipo de estudo, que muitas vezes requer o aporte teórico de diversas disciplinas?
De fato, o interesse pela análise de imagens é um fenômeno crescente. Um olhar sobre os temas das dissertações de mestrado e teses de doutorado defendidas no Brasil mostra o uso de imagens como fonte e objeto de pesquisa, articulados com várias metodologias diferentes.
Poderíamos apontar três aspectos importantes neste processo. O primeiro diz respeito ao chamado “pictorial turn”, expressão cunhada por W. J. T. Mitchell para definir a relação das ciências humanas e da cultura pública com as visualidades. Esta ‘virada’ teria sucedido ao “linguistic turn” e marcado o lugar de fala da Filosofia a partir dos anos 1980.
O segundo aspecto diz respeito às possibilidades propostas rumo a uma história visual, tal como foram elaboradas no Brasil pelo historiador Ulpiano Menezes (USP). Nesse caso específico, tanto as possibilidades como os limites de uma historiografia que privilegie as imagens estão circunscritos ao âmbito do historiador, que toma as imagens como indícios e rastros para responder às suas perguntas, mas também como monumentos/documentos, ou seja, como produtos das culturas que as originaram, mas também como suportes de relações sociais e ideológicas que nos permitem conhecer o contexto dessas origens. Porém, não se pode excluir outras disciplinas e demarcar essa área como exclusiva do profissional da oficina da História, já que as imagens são formas de acesso a conhecimentos construídos interdisciplinarmente. Isso nos leva ao terceiro aspecto interessante, que é a natureza das imagens como mídias mistas, que envolvem outros sentidos além da visão, como a audição (audiovisual), o tato (escultura) e até mesmo o pseudotato criado pelas tecnologias 3D.
Seja como for, os limites desses usos existem e são eles que, quando problematizados, renovam as metodologias e apontam para novas possibilidades.
2) A ciência moderna constituiu-se a partir de objetos e fenômenos visíveis, juntamente com o desenvolvimento das formas de registro e representação desses mesmos objetos e fenômenos. Nesse sentido, seria possível buscar similaridades e/ou diferenças entre representações visuais no campo da ciência, pretensamente ‘objetivas’, e outras formas de perceber o mundo, sobretudo a partir das categorias artísticas que comungam das mesmas técnicas e tecnologias, como pintura, gravura e fotografia?
Uma característica comum às ciências, sobretudo as exatas ou duras, mas não somente elas, é que tentam apagar, dos resultados finais, os traços de subjetividade dos processos de pesquisa. Quando pensamos na fotografia, a imagem objetiva por excelência, vemos essa instrumentalização bastante presente. Ela já foi chamada de imagem sem autor, já que reproduz o mundo através de uma máquina. Porém, ela reproduz o mundo (aparentemente) como nós o vemos, ou seja, é prótese dos olhos. Alguns estudos apontam que o ver, além de fisiológico, é também cultural. Por isso, como historiadores, admitimos que as sociedades modernas se estruturaram sobre demandas ideológicas cientificistas, desde os séculos XVIII e XIX. Quando imagens geradas nesse contexto circulam nos meios científicos, elas podem ser absorvidas para esses fins e criar espaços de ‘discursos objetivos’.
Por outro lado, não raro o mundo das artes é marcado por tentativas contra-hegemônicas que articulam imagens de forma perturbadora, marcando a posição de que a carga de objetividade não é intrínseca à imagem, mas fruto de escolhas. Um exemplo são as imagens de Hiroshi Sugimoto, fotógrafo que brinca com os tempos de exposição da fotografia e acaba apagando do resultado final boa parte daquilo que passou na frente da objetiva. Isso abala um pouco a ideia de reprodutibilidade fiel e inevitável do mundo através da fotografia.
3) Como se caracteriza hoje a pesquisa sobre a história de imagens ou de representações visuais no Brasil? E quais os principais centros de pós-graduação e produção de conhecimento?
Bem, uma resposta completa a essa pergunta demandaria uma pesquisa de fôlego, face a diversidade de campos que atualmente se debruçam sobre a história das imagens e das representações visuais no Brasil. Dos clássicos estudos sobre história da arte aos debates sobre as virtualidades se plasmou um processo de produção de conhecimento efetivamente transdisciplinar. Entretanto, no Brasil, as fronteiras disciplinares perduram, embora sem representarem uma camisa de força. O que presenciamos, hoje, no campo das Ciências Humanas e Ciências Sociais Aplicadas, é a presença de linhas de pesquisa nos programas de pós-graduação que se voltam para o estudo das imagens. Uma abordagem que incorpore a dimensão histórica, ou seja, que problematize a categoria tempo como parte integrante da experiência social na produção, circulação, consumo e agenciamento das imagens técnicas e pictóricas, já se evidencia em alguns trabalhos recentes, principalmente naqueles apresentados nos simpósios e congressos de associações nacionais de história, história oral, história pública, bem como na antropologia, comunicação e artes. Nessas ocasiões, observa-se o trânsito de pós-graduandos e professores de programas diversos em eventos que não são do seu campo disciplinar de origem. Isso demonstra a fertilidade do campo de pesquisa sobre imagens e a abertura das tradicionais fronteiras em prol de uma perspectiva mais holística e complexa dos fenômenos visuais, o que nos impossibilita realmente de indicar um centro que se destaque na produção sobre essa problemática. O que temos, de fato, são redes de interlocução e debate que se configuram e reconfiguram face aos desafios e às demandas da sociedade.
Um exemplo comum à nossa experiência é a reforma curricular do curso de graduação em História da Universidade Federal Fluminense, que, desde os anos 1990, incluiu, como disciplinas instrumentais, o estudo de novos objetos e de suas metodologias, primeiramente, a iconografia e as questões relativas à textualização. Seguiu-se, no século XXI, a atualização do conjunto de disciplinas oferecidas, com a valorização dos estudos de imagem, entre os quais, história da imagem, vídeo história, história e fotografia, história e cinema. Experiências como essa possibilitam que o estudo das imagens, suas histórias e trajetórias, possa se estender à sala de aula, de ensino fundamental e médio, e contribuir para a formação crítica e cidadã. Afinal de contas, as imagens mentem, mas há de se ter condições de lidar com isso.
4) Como o dossiê “Imagem, História e Ciência” contribui para o desenvolvimento dessa área de conhecimento?
Pensamos em um dossiê que articulasse análises e metodologias diferentes e que contemplasse, pelo menos, alguns tipos de imagens, usadas como fonte e/ou objeto de estudo. Paralelamente, visamos à apresentação de abordagens de caráter conceitual que iluminassem as pesquisas atuais no campo da imagem e que contemplassem os diferentes olhares que se cruzam na composição da rede de investigação sobre a história das imagens. Vale lembrar que o dossiê foi produzido por um museu, que incorpora contribuições de profissionais que atuam em museus, mas que, sobretudo, se abre para a universidade, ampliando sua interlocução. Isso reforça o papel dos museus como espaços privilegiados para a reflexão sobre visualidade e conhecimento. Na verdade, diríamos que essa reflexão é necessária, já que museus ainda são os preservadores e produtores de boa parte do patrimônio visual das nossas sociedades. Portanto, reforçamos que a contribuição que o nosso dossiê, efetivamente, proporciona se evidenciam no conjunto de reflexões atuais, feitas por autores do Brasil e também internacionais.
Para ler o artigo, acesse:
MAUAD, Ana Maria; LOPES, Marcos Felipe de Brum. Imagem, história e ciência. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciênc. hum. [online]. 2014, vol.9, n.2 [citado 2014-10-14], pp. 283-286. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981-81222014000200002&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 1981-8122. http://dx.doi.org/10.1590/1981-81222014000200002.
Link relacionado:
Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas – <http://www.scielo.br/bgoeldi/s>
Ana Maria Mauad é coordenadora do Programa de Pós-Graduação em História e pesquisadora do Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense. Sua produção intelectual se concentra na história da fotografia, com interfaces para diversos temas, como cultura visual, memória e historiografia. Sua mais recente publicação é o “Dicionário histórico-biográfico da fotografia e dos fotógrafos no Brasil”, organizado com Ana Paula Serrano e Clarissa Castro, disponível online, um dos frutos de um projeto de pesquisa mais amplo denominado “Memórias do Fotojornalismo Brasileiro”.
Marcos Lopes atua como Historiador no Museu Casa de Benjamin Constant, do Instituto Brasileiro de Museus, e também vem se dedicando à história da fotografia, do fotojornalismo e ao estudo e preservação do patrimônio fotográfico do Brasil.
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