Regina Facchini, pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu/Unicamp e editora do Cadernos Pagu, Campinas, SP, Brasil
Carolina Branco Castro Ferreira, pós-doutoranda do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu/Unicamp, Campinas, SP, Brasil
O segundo semestre de 2015 foi marcado, no campo político brasileiro, por um intenso debate social em torno de campanhas pela exclusão de qualquer menção às discussões sobre gênero e diversidade sexual – compreendidas nos termos do discurso conservador como ‘ideologia de gênero’ – dos planos de educação em todo país. O episódio é emblemático de um processo de transformação de um conceito (gênero), cunhado por um campo científico interdisciplinar em diálogo com diferentes movimentações e movimentos sociais, como uma espécie de ameaça à ‘família’ e às ‘crianças’. Recentemente, também acompanhamos a aprovação, em comissões do legislativo nacional, de projetos de lei que atentam contra direitos das mulheres e contra a pluralidade das famílias no Brasil.
Em meio a esses debates que tomaram a categoria gênero como ideologia, o número 45 do Cadernos Pagu reafirma a força e a importância desse conceito e da teorização interdisciplinar sintonizada com as reflexões forjadas no âmbito das transformações e das lutas sociais. Nesse sentido, as reflexões contidas no número trazem com vigor a rentabilidade de elaborações conceituais em torno de gênero, focalizando suas conexões com temas como parentesco, família, reprodução social, violência, trabalho, educação, corporalidades e espacialidades.
Nesse número, o dossiê ‘Corpos, trajetórias e valores: perspectivas de gênero, famílias e reprodução social em contextos africanos’, organizado por Diego Ferreira Marques e Marta da Rosa Jardim, retoma temas clássicos no campo da antropologia a partir de uma aproximação peculiar, não só por tratar-se de contextos africanos ou afro-diaspóricos, mas pelo foco em dinâmicas sociais que desestabilizaram e deslocalizaram os modelos que haviam conformado as versões clássicas do campo dos estudos do parentesco. Como enfatizam os organizadores, os sentidos de noções como gênero, família e reprodução social, bem como, uma noção de etnografia são colocados sobre escrutínio crítico, seja pelo aparecimento crescente de novas tecnologias ou por transformações de uma ordem eminentemente moral, pela mudança nos designs de arranjos domésticos e familiares ou pelas reinscrições do corpo como um terreno de política.
Na seção artigos, Theophilos Rifiotis em “Violência, Justiça e Direitos Humanos: reflexões sobre a judicialização das relações sociais no campo da ‘violência de gênero’” tematiza a ampliação da pauta de reivindicações sociais por direitos, e a judicialização das relações sociais a partir das reflexões sobre a Lei Maria da Penha e políticas de enfrentamento à violência de gênero. A temática da violência também é abordada no artigo “Consentimento e vulnerabilidade: alguns cruzamentos entre o abuso sexual infantil e o tráfico de pessoas para fim de exploração sexual” de Laura Lowenkron, no qual a autora problematiza as categorias ‘consentimento’ e ‘vulnerabilidade’ e as confronta com a gestão dos problemas do ‘abuso sexual infantil’ e o ‘tráfico de pessoas para fim de exploração sexual’ enquanto problemas sociais. Ainda na chave da justiça, política e direitos, José Rodrigo Rodriguez em “’Utopias’ institucionais antidiscriminação. As ambiguidades do direito e da política no debate feminista brasileiro” reconstrói os principais debates em torno dos sentidos e limites do direito penal em meio ao debate feminista no Brasil, buscando abrir novas perspectivas para análises teóricas e práticas políticas nesse campo.
Conjunções entre gênero e trabalho articulados a outros marcadores sociais de diferença estão presentes a partir de pesquisas sobre carreiras artísticas, científicas e contextos etnográficos no mercado da moda ou de políticas de promoção social. Nesse sentido, Rafael do Nascimento Cesar em “O amante adotado: Chiquinha e Joãozinho, composição além da música” aborda o relacionamento intergeracional entre a compositora Chiquinha Gonzaga e João Batista Fernandes Lage, seu último companheiro afetivo e filho adotivo, com o intuito de investigar as negociações simbólicas realizadas por ambos perante a sociedade carioca no início do século XX. Moema de Castro Guedes, Nara Azevedo e Luiz Otávio Ferreira em “A produtividade científica tem sexo? Um estudo sobre bolsistas de produtividade do CNPq” discutem a articulação entre marcadores sociais de diferença, carreira e trabalho entre bolsistas de produtividade no Brasil. Os autores mostram diferenças na proporção entre homens e mulheres conforme a área de conhecimento, e também apontam o fenômeno de juvenilização ocorrido em todas as áreas, o qual tem favorecido os homens. Nicolas Wasser em “Afetos ao trabalho – notas sobre a sedução da subjetividade em uma empresa brasileira de moda” problematiza o tema dos afetos, marcadores sociais e subjetividade no âmbito do trabalho em uma empresa brasileira de óculos. A reflexão do autor é reveladora de como os vendedores dessa empresa criam técnicas afetivas, seja por meio da identificação com a marca, seja por meio da incitação sexual, que uma vez postas em movimento, simultaneamente aumentam e perturbam o fluxo normatizado pelas vendas. Carin Klein e Dagmar Esterman Mayer em “Mulheres-visitadoras, mulheres-voluntárias, mulheres da comunidade: o conhecimento como estratégia de diferenciação de sujeitos de gênero” analisam uma política de promoção social voltada à infância no Brasil, tomando-a como instância pedagógica que pretende educar e regular mulheres e homens como mães e pais de determinados tipos. Além disso, as autoras se debruçam sobre a produção de outros sentidos, efeitos e sujeitos que tais políticas promovem.
Na seção de artigos ainda encontramos textos, nos quais a educação, articulada a gênero e outras diferenciações sociais, é tematizada no contexto formal das salas de aula, mas também no contexto informal da mídia. Em “A educação do corpo feminino no Correio da Manhã (1901-1974): magreza, bom gosto e envelhecimento” Raquel Discini Campos, discute o papel desempenhado pelo impresso carioca Correio da Manhã, um dos mais expressivos periódicos brasileiros em circulação no século XX, na educação das mulheres do período. A autora enfatiza os anos de 1930, destacando os ensinamentos relativos à aquisição do bom gosto feminino, que passou a ser sinônimo de esbeltez e juventude. Alexandre Bortolini em “O sujeito homossexual como tema de aula: limites e oportunidades didáticas” tendo como objeto de analise o material produzido por participantes de cursos de formação continuada em gênero, sexualidade e educação ofertados pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, problematiza atividades pedagógicas realizadas por profissionais de educação que se propuseram abordar a homossexualidade em turmas de educação básica, como parte do processo de aprendizado, em escolas públicas da região metropolitana do Rio de Janeiro.
Temporalidades e espacialidades são tematizadas em artigos que articulam sexualidade e sociabilidade em Goiânia e Buenos Aires. Em “Entre sobreviventes e bichas dos tempos dourados – memória, homossexualidade e sociabilidade na cidade de Goiânia, Brasil”, Camilo Braz interpreta narrativas sobre os primeiros estabelecimentos de lazer noturno voltados para homossexuais ou entendidos, na cidade de Goiânia, capital de Goiás. Os relatos permitem apontar para a importância desses estabelecimentos no que diz respeito à constituição de redes de amizade, sociabilidade ou de certa movimentação homossexual na cidade, entre as décadas de 1970 e 1980. Martín Boy e Verônica Paiva no texto “Space and sexualities: legitimate users of urban area in the red zone. City o Buenos Aires, 1998-2005” abordam as relações entre sociologia urbana, sexualidade e produção do espaço público, a partir de conflitos urbanos na ‘zona roja’ de Palermo, na cidade de Buenos Aires/Argentina.
Para ler os artigos, acesse:
MARQUES, D. F., and JARDIM, M. R. Apresentação. Cad. Pagu [online]. 2015, n.45, pp. 11-19. [viewed 3rd February 2016]. ISSN 1809-4449. DOI: 10.1590/18094449201500450011. Available from: http://ref.scielo.org/8w4q77
AZEVEDO, A. “Se você quiser me lobolar” – considerações sobre olobolana África do Sul contemporânea. Cad. Pagu [online]. 2015, n.45, pp. 21-49. [viewed 3rd February 2016]. ISSN 1809-4449. DOI: 10.1590/18094449201500450021. Available from: http://ref.scielo.org/b5hdjx
VALE, M. C. “Este país é cheio de apartheid”, diálogos com mulheres sul-africanas na província de KwaZulu-Natal. Cad. Pagu [online]. 2015, n.45, pp. 51-78. [viewed 3rd February 2016]. ISSN 1809-4449. DOI: 10.1590/18094449201500450051. Available from: http://ref.scielo.org/2vnyzk
BULAMAH, R. C. Um lugar para os espíritos: os sentidos do movimento desde um povoado haitiano*. Cad. Pagu [online]. 2015, n.45, pp. 79-110. [viewed 3rd February 2016]. ISSN 1809-4449. DOI: 10.1590/18094449201500450079. Available from: http://ref.scielo.org/h829jx
BONGIANINO, C. F. Crescendo pessoas, relações e lugares: experiências cabo-verdianas sobre família e mobilidade. Cad. Pagu [online]. 2015, n.45, pp. 111-133. [viewed 3rd February 2016]. ISSN 1809-4449. DOI: 10.1590/18094449201500450111. Available from: http://ref.scielo.org/crcv98
CRUZ, D. F. C. Seguindo as tramas da beleza: cabelos na centralidade estético-corporal de Maputo*. Cad. Pagu [online]. 2015, n.45, pp. 135-156. [viewed 3rd February 2016]. ISSN 1809-4449. DOI: 10.1590/18094449201500450135. Available from: http://ref.scielo.org/dfrkzd
PINHO, O. O Destino das Mulheres e de sua Carne: regulação de gênero e o Estado em Moçambique. Cad. Pagu [online]. 2015, n.45, pp. 157-179. [viewed 3rd February 2016]. ISSN 1809-4449. DOI: 10.1590/18094449201500450157. Available from: http://ref.scielo.org/j6sj3w
ARNFRED, S. Notas sobre gênero e modernização em Moçambique. Cad. Pagu [online]. 2015, n.45, pp. 181-224. [viewed 3rd February 2016]. ISSN 1809-4449. DOI: 10.1590/18094449201500450181. Available from: http://ref.scielo.org/fkjkbt
LOWENKRON, L. Consent and vulnerability: some intersections between child sexual abuse and the trafficking in persons for sexual exploitation. Cad. Pagu [online]. 2015, n.45, pp. 225-258. [viewed 3rd February 2016]. ISSN 1809-4449. DOI: 10.1590/18094449201500450225. Available from: http://ref.scielo.org/9pjs5p
RIFIOTIS, T. Violência, Justiça e Direitos Humanos: reflexões sobre a judicialização das relações sociais no campo da “violência de gênero” *. Cad. Pagu [online]. 2015, n.45, pp. 261-295. [viewed 3rd February 2016]. ISSN 1809-4449. DOI: 10.1590/18094449201500450261. Available from: http://ref.scielo.org/sgmvw6
RODRIGUEZ, J. R. “Utopias” institucionais antidiscriminação. As ambiguidades do direito e da política no debate feminista brasileiro*. Cad. Pagu [online]. 2015, n.45, pp. 297-329. [viewed 3rd February 2016]. ISSN 1809-4449. DOI: 10.1590/18094449201500450297. Available from: http://ref.scielo.org/zcr8vv
CESAR, R. N. O amante adotado: Chiquinha e Joãozinho, composição além da música*.Cad. Pagu [online]. 2015, n.45, pp. 341-365. [viewed 3rd February 2016]. ISSN 1809-4449. DOI: 10.1590/18094449201500450341. Available from: http://ref.scielo.org/vn4qkx
GUEDES, M. C., AZEVEDO, N., and FERREIRA, L. O. A produtividade científica tem sexo? Um estudo sobre bolsistas de produtividade do CNPq*. Cad. Pagu [online]. 2015, n.45, pp. 367-399. [viewed 3rd February 2016]. ISSN 1809-4449. DOI: 10.1590/18094449201500450367. Available from: http://ref.scielo.org/6hhghp
WASSER, N. Afetos ao trabalho – notas sobre a sedução da subjetividade em uma empresa brasileira de moda. Cad. Pagu [online]. 2015, n.45, pp. 401-427. [viewed 3rd February 2016]. ISSN 1809-4449. DOI: 10.1590/18094449201500450401. Available from: http://ref.scielo.org/chmzm8
KLEIN, C., and MEYER, D. E. Mulheres-visitadoras, mulheres-voluntárias, mulheres da comunidade: o conhecimento como estratégia de diferenciação de sujeitos de gênero. Cad. Pagu [online]. 2015, n.45, pp. 427-455. [viewed 3rd February 2016]. ISSN 1809-4449. DOI: 10.1590/18094449201500450427. Available from: http://ref.scielo.org/g7mmw8
CAMPOS, R. D. A educação do corpo feminino no Correio da Manhã(1901-1974): magreza, bom gosto e envelhecimento. Cad. Pagu [online]. 2015, n.45, pp. 457-478. [viewed 3rd February 2016]. ISSN 1809-4449. DOI: 10.1590/18094449201500450457. Available from: http://ref.scielo.org/h3kn89
BORTOLINI, A. O sujeito homossexual como tema de aula: limites e oportunidades didáticas. Cad. Pagu [online]. 2015, n.45, pp. 479-501. [viewed 3rd February 2016]. ISSN 1809-4449. DOI: 10.1590/18094449201500450479. Available from: http://ref.scielo.org/2tbhtk
BRAZ, C. Entre sobreviventes e bichas dos tempos dourados – memória, homossexualidade e sociabilidade na cidade de Goiânia, Brasil*. Cad. Pagu [online]. 2015, n.45, pp. 503-525. [viewed 3rd February 2016]. ISSN 1809-4449. DOI: 10.1590/18094449201500450503. Available from: http://ref.scielo.org/xd8w6s
BOY, M., and PAIVA, V. Espacio y sexualidades: usuarios (i)legítimos de lo urbano en la zona roja. Ciudad de Buenos Aires, 1998-2005*. Cad. Pagu [online]. 2015, n.45, pp. 527-549. [viewed 3rd February 2016]. ISSN 1809-4449. DOI: 10.1590/18094449201500450527. Available from: http://ref.scielo.org/qd8tzj
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