As várias faces do cuidado

Regina Facchini, pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu/Unicamp e editora do Cadernos Pagu, Campinas, SP, Brasil

Carolina Branco Castro Ferreira, pós-doutoranda do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu/Unicamp, Campinas, SP, Brasil

cpa_logoPelo menos nos últimos 30 anos, a noção de cuidado e o trabalho de cuidado têm constituído um eixo de discussão relevante no âmbito do debate feminista. Nesse contexto, tais temas têm sido tratados a partir de uma heterogeneidade de perspectivas e campos disciplinares (psicologia moral, ciência política, sociologia, antropologia filosófica, setores ligados à saúde etc.) que têm buscado pensá-los como prática e como disposição, produtores de moralidades que invocam diferentes significados e contextos e múltiplas relações de poder.

Gênero e Cuidados, dossiê organizado por Helena Hirata e Guita Grin Debert na primeira edição de 2016 (número 46) dos Cadernos Pagu, reúne artigos que retomam o argumento político ao redor do care e os atualiza a partir de diferentes contextos de pesquisa, renovando os repertórios sobre o tema dos cuidados.  A maior parte dos textos do dossiê foram inicialmente apresentados e discutidos no Seminário Internacional “Repensando Gênero e Feminismos”, em comemoração aos 20 anos do Núcleo de Estudos de Gênero PAGU, realizado na Unicamp, em setembro de 2014. Além dos artigos que abordam diversas facetas da dimensão política das ações cotidianas do cuidar, a apresentação das organizadoras traça um ótimo panorama contemporâneo desse campo de debates.

Na seção artigos, Dimitri Pinheiro em “Jogo de damas: trajetórias de mulheres nas ciências sociais paulistas (1934-1969)”, examina o processo de institucionalização das ciências sociais em São Paulo, privilegiando o entrelaçamento entre disputas acadêmicas e assimetrias de gênero, a partir de trajetórias de professoras da primeira geração de intelectuais universitários. O autor mostra como elas estiveram em desvantagem, ocupando geralmente posições inferiores e de maior insegurança na hierarquia acadêmica. A temática da trajetória profissional e relações de poder no campo do ensino superior, também permeia a reflexão de Jeorgina Gentil Rodrigues e Maria Cristina Soares Guimarães, em “A Fundação Oswaldo Cruz e a ciência no feminino: a participação feminina na prática e na gestão da pesquisa em uma instituição de ensino e pesquisa”. As autoras analisam a participação feminina no esforço de pesquisa realizado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), nos anos recentes. Os resultados apontam que ainda que a produção bibliográfica das mulheres em números absolutos seja maior que a dos homens, eles apresentam produção média superior à das mulheres. Com relação à participação feminina em postos de tomada de decisão na instituição, o estudo sugere que há segregações hierárquicas ou verticais, os quais caracterizam-se pela menor velocidade na ascensão da carreira pelas mulheres, em comparação com a progressão profissional masculina, fenômeno que limita o alcance de posições de maior prestígio na Instituição.

Articulações entre gênero, carreira e trajetória acadêmica no âmbito da computação e no campo jurídico também são temas dos artigos “Limites de gênero e presença feminina nos cursos superiores brasileiros do campo da computação” de Marcel Maggion Maia, e “Carreiras jurídicas e vida privada: intersecções entre trabalho e família” de Maria Glória Bonelli. No primeiro, o autor discute a presença feminina nos cursos superiores brasileiros do campo da Computação, a partir de dados do Censo de Ensino Superior/MEC. Ele mostra como o número de concluintes homens cresceu 98%, enquanto o de mulheres decresceu 8%, constituindo um fenômeno raro no ensino superior brasileiro, mesmo quando comparado a campos masculinizados, como o da Engenharia.  Apresenta, ainda, dados qualitativos que indicam a persistência de limites de gênero no campo da Computação. No segundo artigo, a autora examina cinco carreiras jurídicas considerando o impacto mútuo entre trabalho profissional e vida familiar. A análise aborda como a criação de filhos marca as trajetórias de carreira e as identificações de homens e mulheres, com destaque para como as interseções entre trabalho e casa e seus reflexos no self, sustentam a concepção apartada dessas esferas.

Na seção artigos, também encontramos reflexões a respeito de diferentes e inovadores aspectos relacionados a diversidade sexual e de gênero a aos direitos sexuais. Para além disso, trata-se de contribuições e formulações que ultrapassam seus objetos empíricos e abrem espaço para reflexões renovadas acerca de outros recortes. Silvia Aguião, em “Não somos um simples conjunto de letrinhas”: disputas internas e (re)arranjos da política “LGBT”, aborda o processo de construção de sujeitos de direitos a partir das estratégias políticas dos atores envolvidos nos debates em torno dos “direitos LGBT”, considerando processos de criação e recriação de morfologias de Estado, e ainda, privilegiando a questão de como certos “direitos” corporificam certas “identidades” e vice-versa.

Direitos e violência produzem a tônica de “Corpos brutalizados: conflitos e materializações nas mortes de LGBT”, de Roberto Efrem Filho, artigo que busca compreender conflitos e materializações constituintes das mortes de LGBT reivindicadas, como crimes de ódio. Para isso, vale-se do acompanhamento etnográfico das atividades do Movimento LGBT na Paraíba, da realização de entrevistas com seus militantes e da análise de documentos, inquéritos e autos de processos judiciais. A reflexão revela como o processo de produção da materialidade de corpos, como provas dos crimes e da violência, está permeado de disputas em torno da (des) legitimação das vítimas em meio a relações assimétricas de gênero e sexualidade.

No marco dos estudos queers estadunidenses e de um diálogo crítico com a gerontologia e os estudos sobre geração e envelhecimento, Carlos Eduardo Henning em “Na minha época não tinha escapatória”: teleologias, temporalidades e heteronormatividade” analisa como são concebidas, imaginadas e convencionadas transições entre os distintos períodos da vida de homens entre os 45 e os 70 anos de idade os quais mantinham práticas homoeróticas e/ou que se identificavam como homossexuais. Os relatos enfocam pressões sociais em prol da realização de determinados marcos biográficos tidos como heterossexuais e convencionados como imprescindíveis para se alcançar a felicidade e a plenitude no ínterim do curso da vida.

Corpo, gênero e pedagogias no marco de culturas terapêuticas, escolares e artísticas também são problematizados na seção de artigos. Em “Você poderá vomitar até o infinito, mas não conseguirá retirar sua mãe de seu interior” – psicanálise, sujeito e transtornos alimentares, Marisol Marini aborda concepções psicanalíticas relativas aos transtornos alimentares, bem como as concepções sobre constituição de sujeitos, sexualidade e gênero pressupostas nesse contexto. O propósito é descrever conceitos psicanalíticos principalmente relativos à relação entre mãe e filha a partir dos quais ocorreriam falhas na constituição do aparelho psíquico, gerando sintomas como anorexia e bulimia.

Helena Altmann e Marina Mariano tratam das relações de gênero estabelecidas entre professor/a e alunos/as nas aulas de Educação Física, em “Educação Física na Educação Infantil: movimentando as relações de gênero”. As autoras a partir de observações de aulas e entrevistas com um professor e uma professora que lecionam em escolas públicas de Campinas, buscam analisar de que forma tais situações podem colaborar para reforçar ou romper paradigmas sociais que classificam e hierarquizam homens e mulheres, meninos e meninas.

Rosa Maria Blanca discute práticas artísticas contemporâneas que utilizam a linguagem da performance para questionar a estética da identidade, em “Performance: entre a arte, a vida e a morte”. A autora toma gestualidades e visualidades em que a performance acontece, bem como sua documentação como dispositivo performativo, sugerindo que o processo performativo tensões na ordem hegemônica social – binária, em contextos de assimetrias e violências de gênero. Para isso, são analisadas práticas artísticas trans e do ativismo latino-americano, sob uma perspectiva queer.

Fechando o número, na seção de resenhas, Marcos Sardá Vieira, em “Tragédia e Aprendizado”, resenha o livro “O Clamor de Antígona”, de Judith Butler. Segundo a leitura do autor, o livro apresenta uma reflexão sobre as relações de parentesco que vão além do entendimento das relações consanguíneas e dos princípios normativos associados à heteronormatividade, através da tragédia de Antígona, personagem ficcional da peça clássica de Sófocles, na sua interpretação de uma quase heroína queer, que desafia a convenção do amor, do parentesco e do seu papel social como mulher.

Ainda nessa seção, “Religião e sexualidade: dilemas contemporâneos brasileiros” apresenta a leitura de Rafael da Silva Noleto do livro “Novas guerras sexuais: diferença, poder religioso e identidades LGBT no Brasil”, de Marcelo Natividade e Leandro de Oliveira.  Em “Das utopias que se tornam realidade, ou: sobre homens que trabalham com feminismos”, Ramon Pereira dos Reis apresenta sua leitura do livro de Benedito Medrado e Jorge Lyra sobre uma organização feminista que trabalha com homens e masculinidades (PAPAI). De acordo com Reis, além dos bons e pertinentes questionamentos que atravessam todo o livro, os autores recuperam narrativas como exercício memorial e também como aporte explicativo a respeito do jogo político cotidiano que ocorre dentro e fora da universidade.

Para ler os artigos, acesse

HIRATA, H. and DEBERT, G. G. Apresentação. Cad. Pagu [online]. 2016, n.46, pp.7-15. [viewed 30th March 2016]. ISSN 1809-4449. DOI: 10.1590/18094449201600460007. Available from: http://ref.scielo.org/vgvy6s

WOODWARD, K. Um segredo público: o viver assistido, cuidadores, globalização. Cad. Pagu [online]. 2016, n.46, pp.17-57. [viewed 30th March 2016]. ISSN 1809-4449. DOI: 10.1590/18094449201600460017. Available from: http://ref.scielo.org/fn96h3

GUIMARAES, N. A. Home and Market, Love and Work, Nature and Profession: Controversies regarding the commodification of care work. Cad. Pagu [online]. 2016, n.46, pp.59-77. [viewed 30th March 2016]. ISSN 1809-4449. DOI: 10.1590/18094449201600460059. Available from: http://ref.scielo.org/n72kvq

LIMA, A. P. Care as a factor for sustainability in situations of crisis: Portugal between the Welfare State and interpersonal relationships. Cad. Pagu [online]. 2016, n.46, pp.79-105. [viewed 30th March 2016]. ISSN 1809-4449. DOI: 10.1590/18094449201600460079. Available from: http://ref.scielo.org/s5mvvn

SORJ, B. Políticas sociais, participação comunitária e a desprofissionalização do careSocial policies, community participation and the deprofessionalization of care*. Cad. Pagu [online]. 2016, n.46, pp.107-128. [viewed 30th March 2016]. ISSN 1809-4449. DOI: 10.1590/18094449201600460107. Available from: http://ref.scielo.org/3fx2w5

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HIRATA, H. Subjectivity and sexuality in care work. Cad. Pagu [online]. 2016, n.46, pp.151-163. [viewed 30th March 2016]. ISSN 1809-4449. DOI: 10.1590/18094449201600460151. Available from: http://ref.scielo.org/nnymdr

PINHEIRO, D. Jogo de damas: trajetórias de mulheres nas ciências sociais paulistas (1934-1969)*. Cad. Pagu [online]. 2016, n.46, pp.165-196. [viewed 30th March 2016]. ISSN 1809-4449. DOI: 10.1590/18094449201600460165. Available from: http://ref.scielo.org/9p4qxn

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MARIANO, M. and ALTMANN, H. Educação Física na Educação Infantil: educando crianças ou meninos e meninas?. Cad. Pagu [online]. 2016, n.46, pp.411-438. [viewed 30th March 2016]. ISSN 1809-4449. DOI: 10.1590/18094449201600460411. Available from: http://ref.scielo.org/26pd2s

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Link externo

Cadernos Pagu – CPA: www.scielo.br/cpa

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

FACCHINI, R. and FERREIRA, C. B. C. As várias faces do cuidado [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2016 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2016/04/19/as-varias-faces-do-cuidado/

 

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