Reconhecer a subjetividade dos migrantes

Roberto Marinucci, editor-chefe do periódico REMHU, Brasília, DF, Brasil

remhu_logoEm descontinuidade com abordagens analíticas que reduzem os fluxos populacionais a meras reações automáticas diante de fatores objetivos – por exemplo, os modelos push and pull –, o Dossiê do periódico REMHU número 47 busca analisar os determinantes subjetivos dos fluxos, a agency das pessoas em fuga, isto é, sua capacidade de elaborar estratégias de sobrevivência e superação, ainda que em meio a graves condicionamentos externos nos países de origem e rígidas políticas de admissão nos países de trânsito e de destino.

De acordo com Filippo Furri, em seu artigo “‘Can migrants act?’. Presence, organization, visiblity in a precarious scape” na atualidade, a gestão dos fluxos migratórios é frequentemente movida por uma racionalidade política, econômica e humanitária que visa neutralizar a subjetividade dos migrantes, corroendo sua projetualidade e liberdade de ação. Os recém-chegados são pressionados para que assumam a condição de vítimas a serem passivamente moldadas pelos benfeitores dos países de destino. Essa é a condição sine qua non da acolhida. Por outro lado, migrantes e refugiados se tornam “indesejados” e “deportáveis” quando assumem posturas proativas e protagônicas ou quando exteriorizam algum tipo de insatisfação ou, até, de rebelião em relação às regras do sistema que os acolhe.

Isso significa que para muitas pessoas que fogem de conflitos ou situações degradantes de vida as adversidades não terminam com a saída do próprio país. A busca de autonomia ou, nas palavras de Chiara Denaro (cf. “Agency, resistance and (forced) mobilities. The case of Syrian refugees in transit through Italy”), a reivindicação do “direito de escolher onde morar”, de construir autonomamente seu projeto migratório, de agir movido pela própria imaginação, como diria Appadurai, se choca frontalmente contra dispositivos de controle e sujeição – como, por exemplo, os assim chamados Centros de acolhida/detenção ou, no caso da União Europeia, os Regulamentos de Dublin.

Apesar disso, os vários estudos de caso relatados nos artigos deste número do periódico revelam que há um excedente de subjetividade que dificilmente pode ser controlado e neutralizado em sua totalidade.

A participação ativa em grupos associativos transnacionais na Espanha e nos EUA (Joan Lacomba; Leila Rodríguez), a elaboração de estratégias de sobrevivência nas travessias da fronteira sul do México (José Carlos Yee Quintero, Eduardo Torre Cantalapiedra), a capacidade de lidar com a burocracia (Daniel Angel Etcheverry) e, inclusive, o engajamento social por condições mais dignas de moradia – por um espaço “habitável” – na Argentina (María Victoria Perissinotti) atestam a presença de um protagonismo, individual e coletivo, nacional e transnacional, que visa não apenas a solução de vicissitudes imediatas e pessoais, diretamente relacionadas à condição migratória, mas, também, o bem estar da sociedade como um todo.

Neste contexto, a reflexão sobre o agir dos migrantes, sobre sua recusa de aceitar passivamente uma inclusão subalterna, apresenta desafios em três âmbitos: 1) de um ponto de vista epistêmico, a ênfase no protagonismo dos migrantes é um convite a repensar as categorias analíticas utilizadas na intelecção dos fluxos a fim de focar o olhar na subjetividade dos processos migratórios; 2) de um ponto de vista político, o desafio é como promover a participação ativa dos migrantes nos processos de elaboração de políticas migratórias e, sobretudo, de um projeto comum de sociedade; 3) finalmente, de um ponto de vista ético, as tentativas de neutralizar a subjetividade dos migrantes colidem frontalmente com princípios básicos que moldaram a modernidade ocidental, princípios ufanamente alardeados na hora de julgar as culturas dos outros e deliberadamente olvidados na hora de acolher pessoas em fuga.

Para ler os artigos, acesse

FURRI, F. “Can migrants act?”. Presenza, organizzazione, visibilità in un orizzonte precario. REMHU, Rev. Interdiscip. Mobil. Hum. [online]. 2016, vol.24, n.47, pp.11-26. [viewed 3rd October 2016]. ISSN 1980-8585. DOI: 10.1590/1980-85852503880004702. Available from: http://ref.scielo.org/zjjdpn

LACOMBA, J. Asociaciones de inmigrantes en la encrucijada. Acción transnacional y riesgos de cooptación. REMHU, Rev. Interdiscip. Mobil. Hum. [online]. 2016, vol.24, n.47, pp.27-44. [viewed 3rd October 2016]. ISSN 1980-8585. DOI: 10.1590/1980-85852503880004703. Available from: http://ref.scielo.org/bwwgqr

RODRIGUEZ, L. Alcance teórico y práctico del transnacionalismo: la participación política de los inmigrantes nigerianos en la Ciudad de Nueva York. REMHU, Rev. Interdiscip. Mobil. Hum. [online]. 2016, vol.24, n.47, pp.45-58. [viewed 3rd October 2016]. ISSN 1980-8585. DOI: 10.1590/1980-85852503880004704. Available from: http://ref.scielo.org/4vv7n3

PERISSINOTTI, M. V. Un lugar donde vivir. Las luchas migrantes por el acceso al espacio urbano en la Ciudad de Córdoba (Argentina). REMHU, Rev. Interdiscip. Mobil. Hum. [online]. 2016, vol.24, n.47, pp.59-76. [viewed 3rd October 2016]. ISSN 1980-8585. DOI: 10.1590/1980-85852503880004705 Available from: http://ref.scielo.org/82hh8h

DENARO, C. Agency, resistance and (forced) mobilities.The case of Syrian refugees in transit through Italy. REMHU, Rev. Interdiscip. Mobil. Hum. [online]. 2016, vol.24, n.47, pp.77-96. [viewed 3rd October 2016]. ISSN 1980-8585. DOI: 10.1590/1980-85852503880004706. Available from: http://ref.scielo.org/yp72mz

YEE QUINTERO, J. C. and CANTALAPIEDRA, E. T. Lidiando con la Frontera Vertical: Estrategias Migratorias de los Hondureños en Tránsito por México.REMHU, Rev. Interdiscip. Mobil. Hum. [online]. 2016, vol.24, n.47, pp.97-114. [viewed 3rd October 2016]. ISSN 1980-8585. DOI: 10.1590/1980-85852503880004707. Available from: http://ref.scielo.org/cdxvgk

ETCHEVERRY, D. A. Sobre Burocracias, Documentos e Sujeitos Imigrantes: Otimização e Flexibilidade na Vivência da Mobilidade. REMHU, Rev. Interdiscip. Mobil. Hum. [online]. 2016, vol.24, n.47, pp.115-129. [viewed 3rd October 2016]. ISSN 1980-8585. DOI: 10.1590/1980-85852503880004708. Available from: http://ref.scielo.org/4vc9g3

Link externo

Revista de Mobilidade Humana – REMHU: www.scielo.br/remhu

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

MARINUCCI, R. Reconhecer a subjetividade dos migrantes [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2016 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2016/10/05/reconhecer-a-subjetividade-dos-migrantes/

 

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