Natália B. R. Coelho é doutoranda em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília – UnB, e membro da equipe de divulgação da Revista Brasileira de Política Internacional – RBPI, Brasília, DF, Brasil
Antônio Carlos Lessa, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), editor-chefe da Revista Brasileira de Política Internacional – RBPI, Brasília, DF, Brasil
A cooperação entre países em desenvolvimento representa fenômeno que tem suscitado crescente interesse nos estudos acadêmicos de Relações Internacionais. No artigo “The relation between Brazilian Foreign Policy and the implementation of bilateral technical cooperation projects in African Countries”, publicado no volume 60, número 1 da Revista Brasileira de Relações Internacionais (RBPI), a professora do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (IRel-UnB), Ana Flávia Platiau, doutora em Relações Internacionais pela Université de Paris – Panthéon-Sorbonne e pós-doutora na Université de Aix-Marseille, França, é professora em Relações Internacionais na Universidade de Brasília e o Mestre em Relações Internacionais pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e pelo IRel-UnB, Rafael Tavares Schleicher, demonstram como interesses pessoais dos agentes envolvidos na implementação da cooperação se sobrepõem a motivações retóricas e discursivas.
Nos anos 1960, a ascensão numérica de nações subdesenvolvidas resultante de processos emancipatórios, sobretudo africanos, conferiu importância e dimensão inéditas às demandas dos novos integrantes do sistema internacional. O Brasil engajou-se nesse processo, tornando-se, recentemente, um dos principais prestadores de colaboração técnica entre os países emergentes. A respeito da contribuição do seu artigo aos estudos sobre a cooperação horizontal concedida pelo governo brasileiro, os autores gentilmente concordaram em conceder esta entrevista a Natália Coelho, da equipe editorial de RBPI.
Abaixo, vídeo com Ana Flávia e sua respectiva entrevista.
1. A prestação de cooperação por países em desenvolvimento é fenômeno relativamente recente. Qual a importância dessa temática para o campo de estudos de Relações Internacionais?
A importância é central por revelar três mudanças nas Relações Internacionais Contemporâneas: o déficit democrático em nível multilateral; a exaustão do modelo tradicional de cooperação; e o crescimento e institucionalização das relações entre os países em desenvolvimento. A primeira está relacionada às seguidas falhas do sistema multilateral em prover soluções adequadas para determinados problemas, especialmente para a questão da transparência, representatividade e equidade. Os exemplos são inúmeros e se estendem desde o processo decisório do Conselho de Segurança e do Fundo Monetário Internacional até o número de nacionais de cada país em cada Organismo Internacional. Nos países desenvolvidos, uma das respostas esteve ligada ao crescimento e internacionalização do fenômeno das non-profit na provisão de bens públicos ‘globais’, como as fundações privadas, por exemplo. Nos países em desenvolvimento, particularmente no Brasil, o Estado teve grande papel na condução e fortalecimento da chamada cooperação Sul-Sul. A segunda razão é o debate sobre a exaustão ou mesmo a ineficiência dos modelos de cooperação ao longo das décadas nos países em desenvolvimento. Nos Estados Unidos, por exemplo, há ao menos três posições bem estabelecidas para esse debate: (i) projetos em larga escala para o problema da pobreza/desenvolvimento (ex: Jeffrey Sachs), como os MDGs e os SDGs; (ii) intervenções pontuais com alta capacidade de avaliação de impacto e potencial de reprodução (ex: Esther Duflo), como o trabalho do J-PAL/MIT; e (iii) a diminuição ou eliminação de grande parte dos sistemas tradicionais de “ajuda” (ex: William Easterly; Dambisa Moyo). Por fim, e diferentemente da cooperação Sul-Sul que emergiu nas décadas de 60 e 70, a cooperação atual entre os países em desenvolvimento tem institutionalidade e uma base material que garante a continuidade de um projeto (ainda) prejudicado pela ideologia: o de que os países em desenvolvimento estão melhor adaptados para prestar cooperação a outros países em desenvolvimento. A missão organizacional do New Development Bank (NDB) dos BRICS está diretamente relacionada a esse projeto.
2. No artigo, é apresentada a possibilidade de o discurso da solidariedade entre os países do Sul ter sido empregado como forma de diferenciar a estratégia brasileira de inserção no continente africano daquela empreendida pela Índia e pela China. Até que ponto essa diferença se sustentou na prática e apresentou fundamento além do discursivo?
Essa é uma das questões centrais do artigo. Tradicionalmente, os métodos de Análise de Política Externa no Brasil estiveram alinhados à ideia de que o Ministério de Relações Exteriores (MRE) era o principal ator no processo decisório. Tal forma de análise fazia sentido quando o MRE detinha traços de burocracia insulada e o estudo da cultura e dos processos organizacionais possuía enorme valor. Entretanto, a análise do policy making process da política externa ficou mais complexa em todos os países, na medida em que a política externa passou a depender ainda mais de um esforço em rede que abrange diversos setores da sociedade e do próprio governo. No período que estudamos, os projetos de cooperação técnica Sul-Sul foram uma base material concreta do discurso de “solidariedade” entre países em desenvolvimento, como notado pelo próprio chanceler Amorim em artigo para a RBPI de 2010. O IPEA teve papel essencial em computar a despesa geral do Brasil com a chamada “Cooperação Brasileira para o Desenvolvimento Internacional” (COBRADI). Contudo, e embora tenha sido um trabalho pioneiro e de enorme valor para a política pública, analisar os fundamentos da cooperação a partir da despesa ignora três elementos centrais que diferenciam a cooperação brasileira das demais: (i) quando se trata de fortalecimento da capacidade de governo de países em desenvolvimento, vários projetos dependeram diretamente da expertise de servidores públicos lotados em diferentes organizações públicas; (ii) a despesa de um projeto pode revelar, quando muito, as suas “entregas” (ex: número de horas técnicas), mas dificilmente considera o impacto que ele teve em relação ao objetivo inicial (ex: diminuição na mortalidade entre crianças de 0-3 anos em virtude das horas técnicas de servidores brasileiros que treinaram agentes de clínicas de saúde em um país em desenvolvimento); (iii) o formato da cooperação brasileira baseada em “horizontalidade” permite aprendizado mútuo entre os parceiros, como demonstra o próprio projeto da ENAP em Moçambique e o projeto Coton-4, da EMBRAPA, em que a ENAP ajudou indiretamente na avaliação. Nesse sentido, e sabendo que a cooperação prestada é fenômeno novo, podemos dizer que o discurso teve uma base material e gerou resultados que – infelizmente – não puderam ser amplamente avaliados com o rigor estatístico desejável. Entretanto, e independentemente de tal base material, o mais interessante do ponto de vista da formação das relações entre países são os interesses e incentivos dos atores envolvidos na prestação da cooperação, que podem ter sido surpreendentemente diferentes daquela ideia de “solidariedade” entre povos de uma “comunidade do sul”. Deixemos esse assunto para uma próxima pergunta.
3. Vocês afirmam que o papel das burocracias nos processos de política externa é ainda pouco estudado no Brasil. Quais as consequências de tal insuficiência para a área de Relações Internacionais? Isso poderia chegar a comprometer a consistência teórica ou a validade empírica de estudos acadêmicos acerca da política externa brasileira que não contemplam uma avaliação burocrática?
Na verdade, há estudos brasileiros de qualidade sobre a influência do Presidente, da Presidência da República e do Legislativo na definição e condução da política externa tanto para os Governos Fernando Henrique Cardoso quanto para os de Luiz Inacio Lula da Silva. Nosso argumento, todavia, está relacionado ao(s): (i) papel das demais burocracias (e não dos poderes em geral) na representação externa do governo federal brasileiro e como essas burocracias criam outros canais/redes externas; (ii) interesses e incentivos dos burocratas (agentes) na conformação da política externa setorial junto ao MRE (principal). Dois exemplos talvez ajudem a elucidar a questão. Durante o governo Dilma Rousseff, enviamos mais de cem mil brasileiros para conduzir estudos e pesquisas em diversos países estrangeiros. Em grande medida, tanto o processo de negociação dos acordos com universidades estrangeiras quanto o controle dos recursos e da expertise estiveram concentrados no Ministério da Educação, na CAPES e no CNPq. Como foi a dinâmica de relacionamento entre essas burocracias e o MRE? Podemos dizer que surgiu uma “diplomacia educacional” brasileira? Qual o impacto da internacionalização do ensino superior na Política Externa? E a presença de centenas de brasileiros no exterior, como influenciou as relações com os países anfitriões para além do debate sobre a prestação de serviço consular a brasileiros? Houve ligação entre esse tema e demais agendas do MRE? O segundo exemplo talvez seja ainda mais elucidativo: durante o governo Dilma Rousseff, trouxemos centenas de médicos cubanos para o Brasil no âmbito do Programa Mais Médicos do Governo Federal. Do ponto de vista de política pública de saúde, o enfoque foi entre o que o governo decidiu fazer (“trazer médicos cubanos”) em relação às outras opções/soluções que o governo ignorou. O grande debate se deu entre a justificativa oficial da ação (ie: resposta aos protestos de junho de 2013) e as demais opções domésticas defendidas pelas corporações médicas e outros grupos/especialistas (ex: carreira de estado para médicos, entre outras). Contudo, no componente externo dessa política, o pouco debate que houve foi prejudicado pelo elemento de polarização pelo qual o Brasil passava naquele período, ficando restrito ao tema das relações entre Brasil e Cuba. Do ponto de vista da relação entre os agentes da política de saúde e aqueles da política externa, um tema pouco explorado foi o dos interesses envolvidos nas relações entre o Ministério da Saúde, o Ministério da Educação, o MRE e Organização Pan Americana de Saúde (OPAS), que operacionalizaram a vinda, o treinamento e a alocação dos médicos cubanos no Brasil. Em outras palavras, se existe uma “diplomacia da saúde”, como ela funciona? Como o processo de formação da agenda? Quais os interesses dos especialistas em saúde na conformação das posições brasileiras de política externa? Nos dois exemplos, temos questões muito difíceis de serem respondidas observando somente o comportamento do MRE, o papel do Presidente/Presidência da República e de um Legislativo cujo entendimento da ação externa brasileira é extremamente baixo.
4. Na conclusão, incita-se a realização de novos trabalhos que confirmem a hipótese de que a relação entre a política externa e a implementação dos projetos de cooperação técnica supõe interesses específicos da burocracia envolvida, a qual dispõe de grau de autonomia significativo. Há uma agenda de pesquisa com este intuito?
Após discutir o tema com alguns colegas no Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (Irel/UnB) e da School of International and Public Affairs (SIPA) da Universidade de Columbia em Nova Iorque, decidimos começar a trabalhar em um modelo teórico que possibilite a análise dos incentivos e comportamento dos burocracias/burocratas e MRE/ABC no âmbito da cooperação técnica internacional. Uma das implicações de longo alcance desse estudo seria contribuir para o debate sobre a reestruturação da Agência Brasileira de Cooperação (ABC).
5. Conquanto o governo da ex-presidente Dilma Rousseff tenha pretendido ser uma continuação da administração anterior, houve significativa alteração da disposição do Brasil em prestar cooperação técnica, com cortes de orçamento na ABC, entre outros órgãos estatais. Tendo em vista o recente retraimento das iniciativas cooperativas brasileiras, como vocês avaliam as perspectivas futuras para a cooperação prestada pelo país?
A Política Externa do governo Dilma Rousseff foi desastrosa não somente pelos seus objetivos, mas sim pela incapacidade em imprimir institucionalidade nas áreas em que propunha mudança. Tanto Lula quanto Rousseff acreditavam piamente na tese de maior presença do Estado na persecução do objetivo nacional do desenvolvimento. A política externa de Lula baseada na projeção internacional do Brasil foi operacionalizada em um período extremamente favorável para os países em desenvolvimento, que Fareed Zakaria gentilmente apelidou de “Rise of the Rest”. Em Rousseff, embora o cenário já não fosse favorável, a dinâmica do processo decisório continuou a mesma: as grandes decisões do Governo Federal estiveram centralizadas em um grupo muito pequeno de pessoas e normalmente resultaram em mais presença do Estado em um cenário econômico de estagnação. Parte da insatisfação de segmentos da burocracia do Executivo, do Legislativo, e do Judiciário esteve relacionada justamente a essa dinâmica. No caso da ABC, houve esforços monumentais para registrar o aprendizado institucional em diversos manuais e publicações, como o “Manual de Cooperação Técnica Sul-Sul”, publicado em 2013, em meio a uma estrutura institucional marcada pela precariedade de recursos e alta rotatividade de funcionários, apenas para citar dois entre muitos problemas.
Até o momento, o novo governo forneceu sinais mistos, como o retorno a alguns eixos clássicos da Política Externa Brasileira, mas sem ignorar alguns temas específicos como o próprio BRICS. Acreditamos que há pouco espaço nesse momento para a renovação da ABC na agenda do governo e espaço ainda menor para a cooperação Sul-Sul, particularmente devido à falta de informação e de estudos de revelem a importância da cooperação prestada para o aperfeiçoamento de programas brasileiros (no Brasil e no exterior) e da própria política externa. É importante notar que, embora o Brasil tenha se tornado prestador, o país ainda é também um receptor importante de cooperação internacional. Consequentemente, a restruturação da ABC passa por um debate muito mais amplo, que inclui: (i) mais estudos sobre a dinâmica da relação entre a burocracia e os organismos internacionais, particularmente a relação entre os interesses e incentivos envolvidos nos projetos de cooperação técnica com tais organismos. A Controladoria Geral da União (CGU) o Tribunal de Contas da União (TCU) fizeram trabalhos consistentes nesse quesito; (ii) maior coordenação e informação sobre a relação entre as políticas públicas setoriais, a internacionalização de tais políticas e a política externa; (iii) um projeto claro de país que possibilite o desenvolvimento de agendas setoriais mais consistentes e aproveite as sinergias já existentes entre burocracias setoriais, ABC, MRE e Organismos Internacionais. Esperamos poder contribuir para o debate com esse estudo e com os demais que ainda virão.
Para ler o artigo, acesse
SCHLEICHER, R. T. and PLATIAU, A. F. What is the relation between Brazilian Foreign Policy and the implementation of bilateral technical cooperation projects in African Countries? Lessons from a South-South cooperation project implemented by the Brazilian National School of Public Administration – ENAP (2009-2012). Rev. bras. polít. int. [online]. 2017, vol.60, n.1, e002. [viewed 18 April 2017]. ISSN 1983-3121. DOI: 10.1590/0034-7329201600110. Available from: http://ref.scielo.org/yv73zj
Link Externo
Revista Brasileira de Política Internacional – RBPI: www.scielo.br/rbpi
Sobre Natália B. R. Coelho
Natália B. R. Coelho é doutoranda em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília – UnB, onde desenvolve pesquisa sobre cooperação Sul-Sul e segurança alimentar. É membro da equipe de divulgação da Revista Brasileira de Política Internacional – RBPI.
Sobre Antônio Carlos Lessa
Antônio Carlos Lessa é professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília e editor-chefe da Revista Brasileira de Política Internacional ‒ RBPI. Doutor em História pela Universidade de Brasília, desenvolveu estudos pós-doutorais na França (2008) e nos Estados Unidos (2015-2016). Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico ‒ CNPq, é editor-chefe da Revista Brasileira de Política Internacional desde 2004.
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