Violência e gênero: novos debates, antigos dilemas

Carolina Branco Castro Ferreira, pós-doutoranda do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu/Unicamp e assessora de comunicação do cadernos pagu, Campinas, SP, Brasil

Regina Facchini, pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu e editora do cadernos pagu, Campinas, SP, Brasil

Carolina Parreiras, pós-doutoranda do Departamento de Antropologia da USP, São Paulo, SP, Brasil

Os diálogos aqui apresentados partem dos debates sobre violência e distribuição de justiça, temática bastante presente nos estudos de gênero no país e na atuação do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu. A entrevista em forma de debate com Guita Grin Debert e Maria Filomena Gregori contextualiza contribuições aos estudos sobre gênero, violência e distribuição de justiça, oferecidas pelos estudos conduzidos pelas duas pesquisadoras no âmbito do Pagu, bem como pelo legado de Mariza Corrêa, uma das fundadoras do Núcleo, primeira editora do cadernos pagu e ex-presidenta da ABA (1996-1998). A entrevista de Adriana Piscitelli compõe esse debate, e a autora fala da contribuição de seu artigo “‘#queroviajarsozinhasemmedo’: novos registros das articulações entre gênero, sexualidade e violência no Brasil”, o qual aborda a relação entre feminismos e violência a partir de casos que envolvem mulheres turistas.

As antropólogas abordam a importância da formulação analítica de Mariza Correa, no livro “Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais” (1983), que, ao operar uma distinção entre atos e autos, conduz ao foco nas narrativas de violência para se compreender a articulação entre gênero e violência. Indicam ainda como as contribuições decorrentes dessa perspectiva modificam historicamente as convenções sociais, políticas e jurídicas ligadas à percepção e ao entendimento do que é considerado violência. Tais mudanças são debitárias do campo feminista, ao enfatizarem “a impossibilidade da existência de estudos de gênero que não tenham uma dimensão política, como parte de sua história” (CORRÊA, 2001).

Influenciadas pela argumentação de Corrêa (1983) e de Foucault (2001), Guita Grin Debert e Maria Filomena Gregori, buscaram compreender os deslocamentos semânticos nos usos da noção de violência contra mulher, desde o início dos anos de 1980 no Brasil, bem como as implicações desses deslocamentos por meio de uma reflexão sobre os efeitos e os limites das articulações analíticas entre crime, violência e relações marcadas pelas diferenças de gênero (DEBERT; GREGORI, 2008). A distinção entre crime e violência feita pelas autoras é relevante para colocar sobre perspectiva crítica esses deslocamentos. Segundo elas, o crime implica a tipificação de abusos, a definição das circunstâncias envolvidas nos conflitos e a resolução desses conflitos no plano jurídico.   Já violência é um termo aberto a disputas de significado, que implica o reconhecimento social mais amplo, não apenas legal, de que certos atos constituem abuso. Para entender esses sentidos é necessário prestar atenção aos processos interativos em que os envolvidos ocupam posições de poder desiguais.

Esse olhar cuidadoso para a operação entre processos, convenções e contextos sociais e políticos, ligados à articulação entre violência e gênero, tem possibilitado mudanças no arcabouço teórico, conceitual e metodológico para tratar da questão. Nesse sentido, é possível perceber como certo modo de articular gênero e violência, que privilegia a violência e relações interpessoais, sobretudo em âmbito doméstico, tem operado como um protótipo para se entender e perceber dinâmicas mais amplas ligadas a essa temática (DEBERT; GREGORI, 2008).

É nesse contexto que se insere a contribuição de Adriana Piscitelli no artigo publicado na edição 50 dos cadernos pagu. “#queroviajarsozinhasemmedo” que compõem o título do artigo da autora, se refere a uma das diversas hashtags que circularam no Twitter, no Brasil, reagindo ao desaparecimento e morte de duas turistas argentinas no Equador, no início de 2016.  Adriana Piscitelli toma como ponto de partida essas reações para refletir sobre novos registros das articulações entre gênero, sexualidade e violência que, envolvendo o turismo, tem se disseminado na internet, em mídias feministas e de circulação geral. A autora ressalta que até pouco tempo atrás, a problemática da violência voltada para as turistas foi pouco contemplada pela produção acadêmica no país e não atraiu a atenção dos ativismos feministas.

De acordo com Piscitelli, nas reações à morte das turistas argentinas, os ativismos mobilizaram uma série de noções, frequentemente sintetizadas na expressão “cultura do estupro”, que fazem parte do arcabouço feminista do combate à violência sexual contra as mulheres, bem como permeiam a produção internacional sobre gênero e turismo que tratou da violência contra as mulheres que viajam sem companhia masculina. A autora argumenta que embora o arcabouço que se manifesta na noção de “cultura do estupro” certamente seja produtivo em termos de mobilizações políticas, essa noção apresenta dificuldades quando acionada no plano analítico. Isso porque geralmente, centrando-se na noção de patriarcado, estas leituras analisam a violência em termos de desigualdade de gênero, outorgando um lugar secundário a outras desigualdades. E, ignorando diferenças entre contextos, dinâmicas de poder e dimensões de violência recorrem à utilização do modelo de violência “doméstica/conjugal” para pensar a violência perpetrada contra as turistas, o que segundo Piscitelli pode vir a ser uma “prisão analítica”.

Assista aos vídeos para conferir essa entrevista, e o debate com Guita Grin Debert e Maria Filomena Gregori.

Vídeo debate com Guita Debert e Maria Filomena Gregori:

Entrevista com Adriana Piscitelli:

Referências

CORREA, M. Morte em família: representações jurídicas e papéis sexuais. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. 14. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2001.

Para ler os artigos, acesse

CORREA, M. Do feminismo aos estudos de gênero no Brasil: um exemplo pessoal.Cad. Pagu [online]. 2001, n.16, pp.13-30. [viewed 22 June 2017]. ISSN 1809-4449. DOI: 10.1590/S0104-83332001000100002. Available from: http://ref.scielo.org/s4s9c8

DEBERT, G. G. and GREGORI, M. F. Violência e gênero: novas propostas, velhos dilemas. Rev. bras. Ci. Soc. [online]. 2008, vol.23, n.66, pp.165-185. [viewed 22 June 2017]. ISSN 1806-9053. DOI: 10.1590/S0102-69092008000100011. Available from: http://ref.scielo.org/6gzw4n

PISCITELLI, A. “#queroviajarsozinhasemmedo”: new registers of the relations between tourism, gender and violence in Brazil. Cad. Pagu [online]. 2017, n.50, 175008. [viewed 21 July 2017]. ISSN 1809-4449. DOI: 10.1590/18094449201700500008. Available from: http://ref.scielo.org/yyk35b

Link externo

cadernos pagu – CPA: www.scielo.br/cpa

Sobre Carolina Branco de Castro Ferreira

Carolina Ferreira

Carolina Ferreira

Carolina Branco de Castro Ferreira é doutora em Ciências Sociais (Unicamp), pós-doutoranda do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, professora colaboradora do programa de pós-graduação em Ciências Sociais e assessora de comunicação do cadernos pagu, todos na Unicamp. Pesquisa sobre gênero, sexualidade, prevenção DST/HIV e Aids, itinerários terapêuticos, processos saúde e doença, moralidades, teoria feminista e teoria antropológica. Campinas, São Paulo, Brasil.

Sobre Regina Facchini

Regina Facchini

Regina Facchini

Regina Facchini é doutora em Ciências Sociais (Unicamp), pesquisadora do Núcleo de Estudos do Gênero Pagu, professora dos programas de pós-graduação em Antropologia Social e em Ciências Sociais da Unicamp. Atualmente é editora do cadernos pagu e diretora regional sudeste da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Pesquisa sobre gênero e sexualidade em suas articulações com movimentos sociais, violência, saúde, políticas públicas e produção de conhecimento científico. Campinas, São Paulo, Brasil.

Sobre Carolina Parreiras

Carolina Parreiras

Carolina Parreiras

Carolina Parreiras é doutora em Ciências Sociais (Unicamp), pós-doutoranda do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP). Pesquisa sobre gênero e sexualidade em suas articulações com ciberespaço; etnografia; antropologia urbana; violência. São Paulo, SP, Brasil.

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

FERREIRA, C. B. C., FACCHINI, R. and PARREIRAS, C. Violência e gênero: novos debates, antigos dilemas [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2017 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2017/06/29/violencia-e-genero-novos-debates-antigos-dilemas/

 

One Thought on “Violência e gênero: novos debates, antigos dilemas

  1. Pingback: A produção da inteligibilidade de refugiados e de vítimas: gênero, sexualidade, direitos e narrativas de violência | SciELO em Perspectiva: Humanas

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *

Post Navigation