Maria Eunice Maciel, Docente no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil
Regina Abreu, Docente no Programa de Pós-Graduação em Memória Social/UNIRIO, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
A tristeza estampada no rosto de uma das mais antigas múmias egípcias que integrava o acervo do Museu Nacional e que escolhemos para a capa do número 53 de Horizontes Antropológicos expressa o sentimento de todos nós diante da tragédia ocorrida no dia 2 de setembro de 2018, quando um incêndio de enormes proporções destruiu parte expressiva do acervo e do próprio prédio do nosso mais antigo e importante museu, justamente quando festejava seus 200 anos de existência. Já estávamos em organização deste volume quando essa tragédia aconteceu e, assim, esta edição de Horizontes Antropológicos, dedicada à antropologia dos museus, também homenageia essa instituição, cujas exposições e acervos encantaram sucessivas gerações, tendo sido uma das primeiras instituições dedicadas à ciência e, muito particularmente, à antropologia no Brasil. Sede do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, um dos mais relevantes centros de pesquisa e produção de conhecimento em antropologia no Brasil, o Museu Nacional detinha expressivo acervo etnográfico, com destaque para as coleções reunidas por Curt Nimuendajú, conhecido como “pai da etnologia brasileira”.
Além disso, congregava coleções diversificadas de objetos de pesquisa científica numa abrangência enciclopédica, desde insetos a fósseis de animais pré-históricos, passando pelo fóssil de Luzia, nossa referência ancestral e que muito nos tem ensinado sobre as origens dos primeiros habitantes em nosso território. A imagem que escolhemos para a capa deste número retrata Kherima, uma jovem que viveu no Egito, entre os séculos I e II da Era Cristã, num período em que o Egito já havia passado para o controle do império romano. Kherima integrava o importante acervo egípcio do Museu Nacional, que foi inteiramente queimado no incêndio de 2018.
Até o trágico incêndio, o acervo egípcio compunha-se de 700 peças, contendo peças que cobriam praticamente toda a história do Antigo Egito, desde o período Pré-Dinástico (entre 5 mil a 3 mil a.C.) ao período Romano (de 32 a.C. a 395 d.C.). A maior parte era, contudo, do período Faraônico (80% das peças, de 3 mil a.C. a 32 d.C.), especialmente do Novo Reinado (1550 a 1069 a.C.) e do III Período Intermediário (1069 a 332 a.C.). No acervo, encontravam-se diversos objetos de contexto religioso e funerário. Havia papiros, estátuas de deuses e deusas, estelas funerárias e votivas, shabits (imagens de pessoas para acompanharem o finado no além-vida), amuletos para proteger o corpo mumificado, esquifes, vasos canópicos (para guardar os órgãos do morto) e múmias de gatos, filhotes de crocodilos, íbis, tartarugas e humanos (PIVETTA, 2014).
“O acervo egípcio do Museu Nacional era reconhecidamente o maior da América Latina, internacionalmente respeitado. Agora, resta no Brasil o pequeno acervo egípcio do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP em São Paulo e as poucas peças originais no Museu Egípcio Rosacruz em Curitiba” (STELLA, 2018) A homenagem que fazemos ao Museu Nacional é para nós também uma forma de afirmar nosso mais veemente protesto com relação ao descaso dos poderes públicos com relação aos museus e aos expressivos acervos etnográficos, científicos e históricos reunidos por dezenas de gerações em nosso país.
Queremos reiterar que esta publicação também incentive a contribuição para a campanha “Museu Nacional vive!” trazendo pesquisas e material iconográfico sobre antropologia e museus num esforço de manter vivas na memória da população imagens e lembranças de materialidades que arderam para sempre em face do descaso e da falta de investimentos públicos, que infelizmente têm sido uma tendência em nosso país.
O Museu Nacional não era exclusivamente um museu de antropologia, mas detinha um importante acervo etnológico, reunido ao longo desses 200 anos. As coleções eram de diversas procedências, incluindo pesquisas de antropólogos, doações, compras e até mesmo saques e transações coloniais, troféus de guerras entre povos indígenas, presentes de chefes tribais africanos aos governantes portugueses. Neste último caso, estavam os presentes doados em 1811 pelo rei Adandozan, do Daomé, hoje Benin, ao então príncipe regente D. João VI, que geraram uma coleção africana que continha raridades como o trono, a bandeira, objetos de uso pessoal e amuletos diversos. Esses objetos condensavam narrativas sobre relações de poder e cordialidade entre governantes, relações comerciais, deixando entrever personagens obscuros e histórias ainda não desvendadas.
A antropologia vai aos poucos encontrando no campo dos museus e da museologia fortes aliados para a construção de novos paradigmas voltados para os estudos, as pesquisas, a difusão dos conhecimentos sobre as relações sociais e humanas na dinâmica da chamada diversidade cultural. O tema da alteridade é ressignificado a partir da colaboração estreita que os museus passam a ter não apenas com aqueles que estudam e pesquisam as diferentes culturas humanas, mas também com aqueles que as vivenciam ou que se proclamam herdeiros de antigas tradições já desaparecidas e cujos vestígios e traços só podem ser encontrados em reservas técnicas dos museus. Desse modo, os museus e, em especial os museus antropológicos e/ou etnográficos, passaram a desempenhar relevante lugar num mundo cada vez mais interconectado e cujos conhecimentos podem ser compartilhados por grande número de agentes.
A antropologia dos museus como campo específico de estudos e pesquisas surge nesse novo contexto onde o desafio consiste, de um lado, em repensar o lugar do museu, em especial do museu antropológico e/ou etnográfico, e, de outro lado, em refletir de um ponto de vista antropológico sobre o lugar da forma “museu” nas relações sociais e na produção da diversidade cultural no contemporâneo. Uma extensa literatura vem sendo produzida sobre o tema, sinalizando um crescimento significativo da potência dos museus como lugares de estudos, pesquisas e difusão do conhecimento antropológico. Paralelamente, temos assistido a um crescimento do campo da museologia e do patrimônio como um campo de estudos onde não têm sido poucos os antropólogos a se aventurarem em novas e relevantes reflexões. Somando-se a tudo isso, observa-se a entrada massiva de agentes sociais que veem nos museus e nos patrimônios lugares de interlocução e diálogo para a construção de políticas públicas, de afirmação e luta por direitos culturais e congêneres e de relações de interculturalidade. Não é exagero dizer que, de “coisas do passado”, os museus passaram a ser hoje lugares de muitas novidades, perplexidades e projetos de futuro para aqueles que acreditam nas práticas da diversidade cultural como importantes patrimônios da espécie humana.
Abrindo o dossiê, apresentamos alguns temas que revelam inquietações e novidades para aqueles que trabalham na área de antropologia dos museus. Adriana Russi e Regina Abreu procuram sistematizar o intenso debate que vem se produzindo em torno do que se convencionou chamar de “museologia colaborativa”, processo que envolve o trabalho compartilhado entre profissionais de museus, antropólogos e os povos indígenas representados nos museus. O artigo “‘Museologia colaborativa’: diferentes processos nas relações entre antropólogos, coleções etnográficas e povos indígenas” discorre sobre ações de inclusão e diálogo com remanescentes de povos cujos objetos foram musealizados em diferentes museus. O estudo focaliza experiências dialógicas, em contextos nacionais e internacionais, que envolvem antropólogos, profissionais de museus, povos indígenas, museus e coleções, apontando para a relevância de práticas colaborativas e simétricas entre aqueles que estudam e representam as diferentes culturas e aqueles que as vivenciam cotidianamente.
A seção Espaço Aberto contém o artigo “O Museu Nacional: ciência e educação numa história institucional brasileira”. Seu autor, Luiz Fernando Dias Duarte é professor titular de Antropologia da UFRJ e foi diretor do Museu Nacional entre 1998 e 2001. No momento, ele é seu diretor adjunto de Assuntos Técnicos. Ele traça um panorama do museu, que em 2018 completou duzentos anos de existência e que, nesse mesmo ano, foi destruído por um incêndio. Sua reflexão é preciosa, pois a história do Museu Nacional reflete a história do país e as vicissitudes pelas quais suas instituições culturais passam.
Por fim, só nos resta desejar boa leitura a todos e todas na certeza de que novos horizontes se descortinam a partir de campos inovadores como o que esta edição apresenta trazendo a antropologia dos museus para o centro do debate.
Referências
PIVETTA, M. O último ato da favorita do imperador. Pesquisa Fapesp, n. 215, jan. 2014. Disponível em: http://revistapesquisa.fapesp.br/2014/01/13/o-ultimo-ato-da-favorita-imperador/
STELLA, T. H. de T. Importância do acervo egípcio do Museu Nacional na História do Brasil. Vermelho, 6 set. 2018. Disponível em: http://www.vermelho.org.br/noticia/314796-1
Para ler os artigos, acesse
DUARTE, L. F. D. O Museu Nacional: ciência e educação numa história institucional brasileira. Horiz. antropol., v. 25, n. 53, p. 359-384, 2019. ISSN: 0104-7183 [viewed 14 May 2019]. DOI: 10.1590/s0104-71832019000100013. Available from: http://ref.scielo.org/7z7vyg
RUSSI, A. and ABREU, R. “Museologia colaborativa”: diferentes processos nas relações entre antropólogos, coleções etnográficas e povos indígenas. Horiz. Antropol., v. 25, n. 53, p. 17-46, 2019. ISSN: 0104-7183 [viewed 14 Maio 2019]. DOI: 10.1590/s0104-71832019000100002. Available from: http://ref.scielo.org/cm889q
Links externos
Horizontes Antropológicos – HÁ: www.scielo.br/ha/
https://www.ufrgs.br/ppgas/ha/index.php/pt/menu/numero-atual
Como citar este post [ISO 690/2010]:
Últimos comentários