Mitos arcaicos e neomitos na cultura nacional cazaque

Carlos Gontijo Rosa, editor executivo da Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso. Professor da Universidade Federal do Acre, campus Floresta, Cruzeiro do Sul, Acre, Brasil.

Maria Helena Cruz Pistori, editora associada da Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso.

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O artigo Mito e discurso mitológico nos estudos literários (Bakhtiniana, vol. 18, no. 4, 2023), escrito por Zhansaya Zharylgapov Bibi Syzdykova, Aida Kaiyrbekova e Azat Babashov, membros do Departamento de Literatura Cazaque da Universidade Karaganda Buketov, do Cazaquistão, e Katira Shakirova, membro do Departamento de Língua e Literatura Cazaque do Instituto Pedagógico Altynsarin Arkalyk, também do Cazaquistão, apresenta uma retrospectiva teórico-histórica sobre as questões do mito e do discurso mitológico na sociedade e na literatura, primeiro de forma geral, e, posteriormente, centrando-se na cultura e literatura cazaque. Sua conclusão é a de que o mito e suas configurações contemporâneas interferem não apenas na representação literária de uma nação, mas também se expandem para outros campos da vida cultural: os pesquisadores contemporâneos consideram uma ampla gama de transformações na compreensão do conceito de “mito” exemplificadas pelas tradições culturais, históricas, sociais e literárias (Zharylgapov et al., 2023).

De fato, os autores do artigo trazem ao leitor uma visão abrangente do conceito de mito, inserido no todo da cultura de um povo. Para tanto, apresentam uma interessante abordagem a partir de teóricos pouco conhecidos no Brasil, fato constatado pela Parecerista I. Assim, ao colocar novas perspectivas em evidência, o texto garante a expansão das possibilidades interpretativas do conceito de mito e seus correlacionados.

O artigo ainda traz uma importante discussão acerca do conceito de neomito, derivação do conceito de mito, que “é usado como um reflexo de teorias científicas, conceitos filosóficos e fenômenos culturais e históricos” (Zharylgapov et al., 2023). Ao pensar releituras, recriações e invenções na arte como ampliação do discurso mitológico, o texto proporciona ao leitor maior gama de camadas de significados possíveis de serem lidos no objeto artístico, sumarizando suas relações com diversos campos do conhecimento, ampliando a abrangência da leitura e do entendimento do mito na cultura contemporânea.

Da mesma forma, e agora seguindo o pensamento da Parecerista II, ao afirmar que o artigo “nos dá acesso a uma cultura mais distante e incomum nos estudos literários e teóricos realizados no Brasil”, ressaltamos o acesso ao imaginário cazaque obtido através do texto. Por meio do recorte realizado pelos autores para a escrita do artigo, é possível vislumbrar aspectos daquela cultura e literatura que aguçam nosso interesse.

Nesse sentido, os autores tratam da cultura cazaque, das heranças folclóricas e das tradições do povo, mostrando-nos, por vezes, como a mitologia cazaque compartilha figuras e histórias mitológicas com outros povos da Ásia Central, mas também com figuras específicas da cultura local. A partir daí, embarcam na análise de algumas obras literárias contemporâneas que lançam mão dos diversos tipos de mitos tratados ao longo do artigo, sejam locais, regionais ou clássicos da cultura ocidental.

Capa do livro “Fita Verde no Cabelo (Nova Velha Estória)", com ilustração de um lobo onde sua pelagem é substituída por desenhos de árvores, flores e outras plantas. Atrás do lobo há figuras circulares em azul, laranja, roxo e branco sobre um fundo rosa. Na capa também constam o título do livro, o nome do autor (Guimarães Rosa), da editora (Global) e do ilustrador (Mauricio Negro).

Imagem: Global Editora.

É, pois, pela construção de um discurso mitológico através de determinados aspectos textuais, para além do escopo temático, que se forja uma “velha nova” mitologia cazaque – e aqui tomamos de empréstimo o subtítulo do conto “Fita verde no cabelo”, releitura da história de Chapeuzinho Vermelho, escrito por Guimarães Rosa (a versão “original” do conto que chegou até nós é aquela recolhida pelos Irmãos Grimm, filólogos, folcloristas e estudiosos da mitologia germânica, conforme aponta Rocha, 2010, p.11). É desse modo que, a partir da perspectiva cazaque e de um aporte teórico diferente do que geralmente circula entre os estudiosos deste lado do Atlântico, o artigo amplia o escopo das discussões acerca do mito e seus desdobramentos contemporâneos na literatura. 

Muito oportunamente, de nosso ponto de vista, a discussão levantada por Zharylgapov e colaboradores complementa lacunas no debruçar sobre os estudos do mito de Gontijo (2023, p. 337-3580), recentemente publicados no artigo “Usos e desusos da mitologia grega na literatura contemporânea: o estatuto mítico do cérebro de Patrícia Portela”. Baseados em Uskembaeva, Zhanysbekova e Saparbaeva (2016 apud Zharylgapov et al., 2023), autores desconhecidos pelo autor até então, o artigo publicado na revista Bakhtiniana enumera assim as principais características dos mitos.

Os mitos são identificados com histórias da vida real, por isso o leitor acredita que sejam verdadeiros; os mitos são frequentemente associados a deuses ou forças sobrenaturais; os mitos explicam vários fenômenos no mundo, mas não há evidências científicas para tais fenômenos mitológicos; qualquer mito tem um valor educativo. 

Tais características, ventiladas de forma menos categórica no artigo brasileiro, trazem nova perspectiva ao que este propõe, como os usos menos ortodoxos da mitologia grega na narrativa contemporânea. Enfim, os textos se complementam, mas cada um deles respondendo a um diverso aporte teórico. Portanto, não encaramos a apreciação trazida no artigo apenas como contato com uma cultura e literatura desconhecidas, mas também como uma oportunidade de ampliar o repertório teórico-crítico acerca dos estudos dos mitos e uma chance de aprender novos caminhos argumentativos.

Referências

GONTIJO ROSA, C. Usos e desusos da mitologia grega na literatura contemporânea: o estatuto mítico do cérebro de Patrícia Portela [online]. In: Pimentel, Cristina; Mourão, Paula. (ed.). A literatura clássica ou os clássicos na literatura: presenças clássicas nas literaturas de língua portuguesa. Lisboa: Colibri; Centro de Estudos Clássicos, 2023, vol. VI, pp. 337-358 [viewed 08 February 2024]. https://doi.org/10.51427/10451/60073. Available from: http://hdl.handle.net/10451/60073 

ROCHA, W.I. As várias histórias de Chapeuzinho Vermelho: repressão e moral nos contos de fadas. Revista Anagrama: Revista Científica Interdisciplinar da Graduação [online]. 2010, vol. 3, no. 4, pp. 1-14 [viewed 08 February 2024]. https://doi.org/10.11606/issn.1982-1689.anagrama.2010.35461. Available from: https://www.revistas.usp.br/anagrama/article/view/35461  

Para ler o artigo, acesse

ZHARYLGAPOV, Z., et al. Mito e discurso mitológico nos estudos literários. Bakhtiniana. Revista De Estudos Do Discurso [online]. 2023, vol. 18, no. 4 [viewed 08 February 2024]. https://doi.org/10.1590/2176-4573p63680. Available from: https://www.scielo.br/j/bak/a/6XFckvwSYk85TCrxfHLqy4H/ 

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Como citar este post [ISO 690/2010]:

ROSA, C.G. and PISTORI, M.H.C. Mitos arcaicos e neomitos na cultura nacional cazaque [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2024 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2024/02/08/mitos-arcaicos-e-neomitos-na-cultura-nacional-cazaque/

 

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