Como a antropologia pode ajudar a entender a ascensão da política populista por vias digitais

Letícia Cesarino, professora, Departamento de Antropologia, Universidade Federal de Santa Catarina.

Nos últimos anos, pesquisadores de várias especialidades têm se dedicado a compreender a relação íntima entre a plataformização das mídias digitais e ascensão de lideranças populistas que se observou em inúmeros países ao longo da última década, entre eles o Brasil. O dossiê “Mecanismos semióticos e digitais dos populismos contemporâneos”, no periódico Trabalhos em Linguística Aplicada, compilou trabalhos nacionais e internacionais que buscam lançar luz sobre esse fenômeno multifacetado a partir dos estudos da linguagem, em diálogo com outras áreas do conhecimento como a antropologia.

O artigo “How social media affords populist politics: remarks on liminality based on the Brazilian case”, que pode ser traduzido por “Como as mídias sociais propiciam a política populista: notas sobre liminaridade com base no caso brasileiro”, explora o potencial da teoria antropológica clássica para ajudar na compreensão da eficácia do populismo digital. No ocidente, tendemos a separar o social da técnica, porém existe uma dimensão propriamente técnica no modo como o atual modelo da internet, baseado nas mídias sociais e na economia de dados, introduz um viés favorável ao tipo de política que convencionamos chamar de populista. Essa dimensão pode ser separada de aspectos mais conjunturais, por exemplo, por meio da comparação entre casos afastados no espaço. É o que faz a primeira parte do artigo por meio de uma comparação entre os casos de Narendra Modi na Índia e Jair Bolsonaro no Brasil. Embora a análise trazida enfoque essa comparação específica, os padrões transversais daí derivados também podem ser estendidos a outros casos, como o de Donald Trump nos EUA e os populismos de direita que proliferam na Europa, como mostram outros artigos publicados no dossiê.

Imagem: Domínio Publico.

É neste sentido que o artigo explora conceitos derivados da etnografia clássica para lançar luz sobre a eficácia técnica dos populismos digitais contemporâneos. A literatura antropológica sobre rituais e tabu tem se mostrado especialmente frutífera nesse sentido, em autores como Mary Douglas (2010), Victor Turner (2013) e Gregory Bateson (2008), que realizaram suas etnografias entre povos não-modernos na Melanésia e em África. O artigo privilegia, para uma comparação mais detalhada, as considerações teórico-analíticas do antropólogo britânico Victor Turner sobre o processo ritual entre os Ndembo (onde hoje é a Zâmbia), argumentando que a plataformização produz ambientes paradoxais de crise permanente que se assemelhariam, em termos estruturais, aos contextos nos quais são realizados os ritos de passagem.

O argumento se desenvolve através da comparação entre cinco dimensões estruturais observadas tanto no processo ritual ndembo quanto nos ecossistemas digitais da “nova direita” nos quais foi realizada a campanha bolsonarista em 2018. Em ambos os casos, a reorganização identitária se dá em contextos de crise e suspensão das normas prevalentes na sociedade convencional – o que Turner chamou de liminaridade. No ambiente ritual, a suspensão de marcadores sociais preexistentes (o que, no campo de novas mídias, chamaríamos de desintermediação) permite a recomposição de novas identidades horizontais e indiferenciadas do tipo que Turner denominou “communitas”.

Na communitas, os indivíduos são expostos ao que o autor chamou de núcleo cultural, ou seja, os símbolos e valores mais fundamentais da cultura em questão. O núcleo cultural é acessado de forma direta, sem a mediação das instituições sociais convencionais: no caso do bolsonarismo, a soberania popular, a nação, Deus acima de tudo, etc. Outro ponto notável de convergência é a prevalência da produção de identidades e afetos por mímese (replicação por cópia) e as inversões anti-estruturais tão fundamentais aos populismos, conspiracionismos e outros movimentos online que se formam por conversões do tipo red pilling, onde o que se achava que era verdadeiro se mostra produto de manipulação por forças ocultas (no caso, a mídia, a esquerda): consequentemente, o povo vira a elite,  o desprezado torna-se o escolhido, o profano e o tabu são elevados a um poder sagrado de limpar e renovar a sociedade, entre inúmeras outras inversões. Por fim, tanto o ambiente dos ritos de passagem ndembo quanto o ambiente plataformizado do atual capitalismo digital são estruturados no sentido da produção de sujeitos influenciáveis, que Turner chamou de heteronomia. Paradoxalmente, a economia da influência opera com mais eficácia exatamente lá onde os sujeitos se pensam mais empoderados e mais livres.

Referências

BATESON, G. Naven: Um Esboço dos Problemas Sugerido por um Retrato Compósito, Realizado a Partir de Três Perspectivas, da Cultura. São Paulo: Edusp, 2008.

DOUGLAS, M. Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva, 2010.

SINHA, S. Fragile Hegemony: Social Media and Competitive Electoral Populism in India. International Journal of Communication [online]. 2017, vol.11, pp.4158–4180. [viewed 14 May 2021]. Available from: https://ijoc.org/index.php/ijoc/article/view/6739

TURNER, V. Processo ritual: Estrutura e antiestrutura. Petrópolis: Vozes, 2013.

Para ler o artigo, acesse

CESARINO, L. HOW SOCIAL MEDIA AFFORDS POPULIST POLITICS: REMARKS ON LIMINALITY BASED ON THE BRAZILIAN CASE. Trabalhos em Linguística Aplicada [online]. 2020, vol. 59, no.01, pp. 404-427  [viewed 14 May 2021]. https://doi.org/10.1590/01031813686191620200410. http://ref.scielo.org/cvgmkd

Links externos

Trabalhos em Linguística Aplicada – TLA: www.scielo.br/tla

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

CESARINO, L. Como a antropologia pode ajudar a entender a ascensão da política populista por vias digitais [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2021 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2021/06/22/como-a-antropologia-pode-ajudar-a-entender-a-ascensao-da-politica-populista-por-vias-digitais/

 

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *

Post Navigation