Eduardo Rocha, jornalista, jornal O Liberal, Belém, PA, Brasil.
Em seu volume 18, número 2 (maio – agosto de 2023), o Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas publicou o artigo Um emaranhado confuso: antropologia pública, terras indígenas e mitos ruralistas no Brasil atual. Nele, o autor Cristhian Teófilo da Silva, da Universidade de Brasília, busca situar a Antropologia no contexto das discussões acerca da demarcação de territórios indígenas, quilombolas e de outras comunidades tradicionais do Brasil. Além disso, explora sua relevância para a preservação de áreas verdes, o funcionamento da cadeia produtiva do agronegócio e, também, diretamente, para as mudanças climáticas na Terra.
Esse estudo lança luzes sobre o papel desempenhado por essa disciplina, em particular, pela Antropologia Pública, no processo histórico de demarcação dessas áreas. Em muitas ocasiões, a atuação desses profissionais foi questionada e até combatida por setores da sociedade, de forma a deslegitimá-la, seja por falta de aprofundamento dos princípios e critérios adotados pelos profissionais ou por pura má-fé, a partir de interesses próprios de setores relacionados à questão.
Para isso, são construídos discursos contrários à defesa dos direitos dos povos e comunidades tradicionais, fundamentados no senso comum, que se baseiam em conceitos que deturpam o entendimento do processo histórico, social e cultural de indígenas e quilombolas no país. Exemplo disso é o argumento de que os povos indígenas devem ser incluídos na sociedade brasileira, uma vez que não mantêm mais suas características e comportamentos originais. Tal argumento serve de pano de fundo para tomadas de decisões contrárias aos direitos dessas comunidades.
De pronto, existem duas razões para conferir o trabalho do antropólogo Cristhian Teófilo: o Brasil sediará em 2025 a 30ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP30), e uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a atuação de organizações não-governamentais (ONGs) está atualmente em curso no país. Esses dois assuntos acabam por instigar o debate acerca da importância ambiental, histórica e cultural das comunidades tradicionais no Brasil, assim como o conhecimento adquirido sobre elas mediante a atuação de antropólogos.
No estudo, são apresentados aspectos da discussão acerca da contribuição da Antropologia “no âmbito da biopolítica estatal para assegurar justiça social e ambiental para povos indígenas no Brasil, a fim de contextualizar a crítica relativa à Antropologia e a seus praticantes por grupos e setores econômicos da sociedade, que se fizeram representar em uma comissão parlamentar de inquérito, a qual expressou o nível de incompreensão sobre o papel desempenhado pela disciplina nas referidas políticas” (Silva, 2023, p. 1).
No contexto dos discursos, o pesquisador analisou o discurso do Relatório Final da Segunda Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Fundação Nacional do Índio/Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (CPI Funai/Incra), instalada em 2015, acerca da demarcação de terras de povos indígenas, como um texto formado a partir do senso comum sobre os indígenas, os antropólogos e a disciplina. Daí a abordagem no artigo sobre “em que medida esse mesmo senso comum se ancora em concepções essencialistas de identidade existentes dentro da Antropologia e aponta para a necessidade de revisão crítica do próprio discurso teórico da disciplina” (Silva, 2023, p. 1).
Durante o desenrolar da CPI Funai/Incra, que investigou a atuação da Funai e do Incra na demarcação de terras indígenas e de quilombos, Cristhian Teófilo da Silva acompanhou de perto a situação. Ele relata a atuação da chamada “bancada ruralista” na defesa do interesse de empresas que atuam no campo, por meio da produção discursiva de “verdades” na Comissão Parlamentar de Inquérito, a fim de influenciar a percepção pública, gerando efeitos divergentes sobre a proteção a direitos territoriais e culturais de povos e populações tradicionais.
“As sessões da CPI Funai/Incra constituíram arenas públicas de colisão de valores e interesses contrastantes, dando, assim, lugar a eventos de manifestação espontânea de um senso comum arraigado de brasilidade, nos quais se tornou possível identificar os argumentos de autoridade que são invocados por parlamentares ruralistas a partir de uma alegada ‘experiência mundana’ com o Brasil, sua história, sua cultura, seu território e seu povo; em suma, com seus mitos nacionais”, ressalta Cristhian.
Figura 1. Povo Guarani em manifestação no Monumento às Bandeiras em São Paulo, Brasil.
No discurso dos parlamentares, houve uma preferência notável por enfatizar a Funai, os termos “índios”, “silvícolas” e “mestiços (as)” em detrimento do uso da expressão “povos indígenas”, reconhecida pela Convenção, que aparece apenas 44 vezes no relatório final da CPI. Por outro lado, como enfatiza Cristhian, a incidência de termos ou expressões como: ‘camponês’, ‘trabalhador rural’, ‘sertanejo’, ‘sem-terra’ e correlatos é ínfima, para não dizer virtualmente inexistente, no discurso parlamentar ruralista.
De acordo com esta hierarquização, os ruralistas da CPI não admitem que povos indígenas sejam representados em sua diversidade étnica e cultural, tampouco que a identidade quilombola seja juridicamente atualizada, ou que camponeses sejam protagonistas conscientes da luta pela reforma agrária.
“Quando falam, de acordo com os parlamentares ruralistas, sua voz teria sido previamente pautada por outros. Desde esta perspectiva, os parlamentares ruralistas presumem, com base no senso comum, que os antropólogos, na qualidade de agentes cooptados por ONGs (ou seja, os antropólogos também seriam apenas caixa de ressonância de outras agências), seriam aqueles que estariam falando pelos indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais. Trata-se de uma deturpação evidente da natureza do trabalho antropológico, ao mesmo tempo que representa uma prática dos próprios parlamentares ruralistas, os quais, no âmbito do relatório, acabam por performar autoritariamente o papel que criticam”, enfatiza o pesquisador.
De acordo com Teófilo, o senso comum se revela como uma afirmação do poder, ou seja, como um pensamento autoritário. Em sua pesquisa, o autor analisa de que forma conceitos como “autoctonia” e “indianidade”, adotados pela Antropologia, são decisivos, em sua complexidade, para a classificação e a administração da diversidade étnica e cultural em contraponto, ou em choque, com ideologias universalistas e liberais. Essas questões são também evidenciadas no discurso parlamentar ruralista, conforme apontado pelo pesquisador.
Alguns pontos levantados por esses dois conceitos são utilizados pelo discurso parlamentar ruralista para atacar a prática antropológica, os direitos territoriais dos povos indígenas, dos quilombolas e de povos e comunidades tradicionais. Alega-se que essas populações não seriam mais portadoras de identidades e culturas “autênticas”, “verdadeiras” ou “legítimas”. Em vez disso, argumenta-se que elas necessitam de políticas de inclusão social antes de serem reconhecidas como coletividades culturalmente diferenciadas e detentoras de direitos coletivos. Por outro lado, antropólogos têm atuado junto a estas coletividades a partir de políticas públicas amparadas por direitos constitucionalmente estabelecidos e por normas infraconstitucionais.
“Tornou-se inevitável considerar que os indígenas e demais povos e comunidades tradicionais, assim autodeterminados, estão conseguindo afirmar sentidos êmicos de autoctonia (aqui referidos como indianidade) dentro das e entre as situações coloniais/modernas para subverter as identificações étnicas subordinadoras e arbitrárias colocadas sobre eles por outros agentes colonizadores”, afirma Cristhian Teófilo, enfatizando a necessidade de atuação de antropólogos no processo de demarcação de terras.
Partindo do pressuposto de que a Antropologia pode ser compreendida como uma ciência social dedicada à interpretação da diversidade cultural e considerando os antropólogos como indivíduos comprometidos com a justiça social, empenhados no reconhecimento e na valorização das diferenças culturais, o artigo identifica as complexas relações de poder que permeiam a atuação desses profissionais. Isso se dá pelo fato de que a disciplina também funciona como uma forma institucionalizada de entendimento das diferenças culturais e, ainda, de classificação, gestão e controle de coletividades diferenciadas dentro das sociedades nacionais, sempre que necessário.
“Pensar a Antropologia em contextos e termos biopolíticos não é algo novo. Mas a consideração crítica dos efeitos de poder da prática antropológica enraizada nas potências coloniais e imperiais, governos nacionais, empresas multinacionais, agências financeiras ou, como de costume, em universidades e organizações não-governamentais (ONGs), sobre as sociedades, comunidades, grupos ou coletividades que acolhem a prática etnográfica, é eticamente inevitável e, por isso, obriga a um exercício de interpretação permanente sobre seus contextos de atuação”, salienta Cristhian Teófilo.
O autor chama atenção para a amplitude desse debate: “Faz-se necessário pensar os efeitos da política de representação antropológica em cenários mais amplos e, via de regra, adversários da implementação dos direitos de coletividades, tidas, geralmente, como minoritárias”.
Para ler o artigo, acesse
SILVA, C.T. Um emaranhado confuso: antropologia pública, terras indígenas e mitos ruralistas no Brasil atual. Bol. Mus. Para Emílio Goeldi. Ciênc. Hum. [online]. 2023, vol. 18, no. 2, e20220063 [viewed 06 September 2023]. https://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0063. Available from: https://www.scielo.br/j/bgoeldi/a/xzWHSbJjYpFzSGmfrddWk7N/
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