Repensando a Filosofia a partir da perspectiva feminista

Janyne Sattler, Professora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC, Brasil

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Os recentes movimentos das filósofas brasileiras no campo da filosofia contemporânea, ou os movimentos da filosofia feminista, ou, ainda, o que se tem chamado de revisão feminista da história da filosofia, têm promovido e operado significativas mudanças práticas e teóricas numa área acadêmica sabidamente excludente e elitizada.

Em termos práticos, as demandas das filósofas caminham junto de ações de cunho político, público e institucional, e balizam documentos contra o assédio moral e sexual na academia (cujos alvos prioritários são as mulheres ou as pessoas femininizadas e racializadas), a favor de cotas e de outras ações de inclusão e de representatividade (como a reivindicação de que bancas de seleção, bancas de concurso, comissões organizadoras de eventos, mesas e palestras em eventos, não sejam compostas unicamente por homens, mas demonstrem a pertença e a presença de mulheres, na filosofia) e em direção à construção de uma educação filosófica mais democrática, a partir de currículos e bibliografias mais plurais (e não unívoca e canonicamente “masculinos”).

Essa construção incide, por sua vez, sobre os termos teóricos desses movimentos, já que ela demanda uma reflexão concomitante sobre os significados do fazer filosófico e de seus conteúdos legitimados em função de critérios epistemológica e filosoficamente inquestionados pela agora já longa institucionalização da filosofia.

Assim, o pensamento levado a cabo pelas filósofas feministas tem preocupações que são também de cunho metafilosófico, metodológico e epistemológico, cujo objetivo é a compreensão dos modos concorrentes de produção do conhecimento que validam o escopo, o texto e a autoria como genuinamente pertencentes à área – ou não.

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Imagem: Mídia Mágica do Canva.

Tudo isso tem igualmente exercido certa pressão sobre a filosofia acadêmica como um todo e, se algumas dessas demandas encontram respostas efetivamente comprometidas no seio da comunidade filosófica, outras tantas se manifestam de modo hipócrita, quando o intuito é aquele do mero cumprimento da cota (o fenômeno do tokenismo), o qual nada faz senão manter o status quo, mas com pose de bom-mocismo.

Outras respostas são esdrúxulas, quando a intenção é aquela da abertura pela metade, que aparenta um interesse genuíno pelas questões levantadas pelos movimentos feministas na filosofia, contudo, que, no fundo, só deseja o elogio da iniciativa ou do suposto esforço e que, em sua falsa escuta, incorre em contínuas, inconscientes e impensadas camadas de reprodução masculinista, quando não implicitamente machista.

Com efeito, os casos de reprodução involuntária por parte de filósofos com boas intenções podem ser facilmente sanados, se houver também boa vontade e escuta sincera sobre o que as filósofas têm dito, e sobre a linguagem que elas têm usado, para que saiamos todos dos registros que produziram e produzem ainda as hierarquias de valor e a ratificação do que conta ou não como filosofia.

É sobre um desses casos em particular que trata o artigo A insólita a-generidade da filosofia masculinizante, publicado na Trans/Form/Ação (vol. 00, no. 00), a fim de esclarecer os modos pelos quais uma linguagem (epistemológica e filosófica) viciada na generificação fantasmaticamente universal da filosofia trai as melhores das intenções.

Esse estudo trata do caso de uma chamada de artigos em que a “perspectiva feminina no pensamento filosófico” é tomada notadamente como exceção e alternativa a uma perspectiva filosófica supostamente a-generificada, requerendo, portanto, uma abordagem específica para sua elaboração e devida compreensão. O objetivo é repassar os termos da chamada e responder criticamente a algumas perguntas suscitadas por sua linguagem e por alguns dos conceitos presentes nos requisitos listados para o aceite das publicações.

Assim, pergunta-se sobre o significado (linguístico-político) da generificação do pensamento filosófico, tomando como chave crítica de leitura uma parte da vasta produção das epistemologias feministas, para insistir na parcialidade e na localização de toda e qualquer manifestação filosófica; em seguida, a distinção entre “sexo” e “gênero” serve a uma correção à enunciação quase biológica sobre autoria textual filosófica; e, por fim, trata de questões sobre a generificação dos “conteúdos” filosóficos e sobre os interesses da filosofia feminista e da história feminista da filosofia para o campo da filosofia, composto por homens, mulheres e pessoas de gêneros diversos.

Para ler o artigo, acesse

SATTLER, J. A insólita a-generidade da filosofia masculinizante. Trans/Form/Ação [online].  2024, v. 47, no. 2, e02400234 [viewed 3 December 2024]. https://doi.org/10.1590/0101-3173.2024.v47.n2.e02400234. Available from: https://www.scielo.br/j/trans/a/tjvchksRPCvPn8RF3H6FGrc

Referências

ALCOFF, L. and POTTER, E. Feminist Epistemologies. New York and London: Routledge, 1993.

ARAÚJO, C. Quatorze anos de desigualdade: Mulheres na carreira acadêmica de Filosofia no Brasil entre 2004 e 2017. Cadernos de Filosofia Alemã [online]. 2019, vol. 24, no. 1, pp. 13-33 [viewed 3 December 2024]. https://doi.org/10.11606/issn.2318-9800.v24i1p13-33. Available from: https://www.revistas.usp.br/filosofiaalema/article/view/155750

BUTLER, J. Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade. Tradução: Renato Aguiar. 13. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

FEDERICI, S. Calibã e a bruxa. Mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução: Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017.

FRICKER, M. Injustiça Epistêmica. O poder e a ética do conhecimento. Tradução: Breno R. G. Santos. São Paulo: Edusp, 2023.

Links externos

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Sobre Janyne Sattler

É doutora em filosofia pela Université du Québec à Montréal e professora pesquisadora do departamento e do Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina.

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

SATTLER, J. Repensando a Filosofia a partir da perspectiva feminista [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2024 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2024/12/03/repensando-a-filosofia-a-partir-da-perspectiva-feminista/

 

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