Jonas Brito, doutor em História, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), professor de História, Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), Tauá, CE, Brasil.
O artigo Chico Projeto reforma urbana e protesto social (Salvador, 1928-1930), publicado por Varia Historia (vol. 40, 2024), aborda o conjunto de reformas urbanas conduzidas em Salvador entre 1928 e 1930 pela prefeitura municipal e o governo da Bahia, em aliança com a Companhia Linha Circular, encarregada da eletricidade, telefonia e transporte público da cidade.
Empregando sobretudo imprensa, documentos oficiais e empresariais, o historiador Jonas Brito atribuiu a essas reformas a origem do Quebra-Bondes. Trata-se de uma insurreição popular que abalou a capital baiana em 4 e 5 de outubro de 1930, ou seja, durante a Revolução de 1930, destruindo o material fixo e rodante da Circular, notadamente dois terços dos bondes. O assunto é atual, não apenas pela aproximação do centenário da revolução (2030), como pelo permanente desafio que os problemas urbanos impõem ao Estado e à sociedade no período atual.
Figura 1. Trâmuei destruído no Quebra-Bondes diante da Catedral Basília no Terreiro de Jesus. Salvador: outubro de 1930.
Os referidos empreendimentos urbanos englobaram setores estratégicos, como o transporte público, a partir da reforma e da ampliação da frota carril e dos ascensores públicos; a eletricidade, com a restauração e a ampliação da rede distribuidora de Salvador e a construção de uma hidroelétrica no Recôncavo; e, por fim, a telefonia, com a introdução dos aparelhos automáticos, que dispensariam a intermediação das telefonistas nas ligações.
O prefeito Francisco Souza (1928-1930) incrementou a arrecadação municipal, destinando-a à abertura e ao calçamento de ruas, à reorganização das feiras e dos mercados, bem como à importação de caminhões e de fornos incineradores para a coleta, transporte e destinação do lixo. O governador estadual Vital Soares (1928-1930) negociou um empréstimo estrangeiro para financiar a reorganização dos serviços de água e esgoto de Salvador.
O programa marcou a ascensão de ambas as autoridades ao poder, ela mesma alardeada como símbolo da estabilidade política e da solidez financeira da Bahia, supostamente restauradas a partir de 1924, quando o estado tornou a ser governado pelo Partido Republicano da Bahia (PRB).1
Figura 2. Vital Soares (1928-1930) é cumprimentado durante sua posse no governo da Bahia, no palácio Rio Branco. No mesmo dia, empossou, na prefeitura da capital, Francisco Souza, que, no canto direito da imagem, segura uma cartola. Salvador: 29/3/1928.
O artigo explicitou uma série de limites e incoerências nesse programa que a princípio ensejou esperanças. O principal problema residiu no custo material que as obras acarretaram para uma população cronicamente oprimida pela carestia e que, a partir do final de 1929, amargou demissões e despejos, entre outros impactos da Quebra da Bolsa de Nova Iorque. 2 Francisco Souza e Vital Soares decretaram aumentos tributários que encareceram o preço dos aluguéis e dos alimentos, tendo o governador, em acréscimo, determinado um aumento na taxa de água e esgoto de 50%.
Os diretores da Circular impuseram a duplicação das tarifas dos bondes e dos ascensores públicos, exigindo que a taxa de eletricidade e a do telefone passassem a ser compostas em parte em dólar, o que era justificado pela necessidade de importação de material para a hidroelétrica do Recôncavo. O artigo tangencia outra problemática contemporânea, isto é, a dolarização das taxas dos serviços públicos. 3
Figura 3. Canteiros da barragem da usina hidroelétrica de Bananeiras, no Recôncavo. Bahia, c. 1930.
Esse processo ensejou uma inquietação popular que cresceu à proporção que as reformas urbanas se desenrolaram. Entre o início de 1928 e o início de 1930, ocorreram quatro quebra-bondes, aqui grafados com inicial minúscula para designar protestos de proporções menores que o motim de outubro de 1930, nos quais a população, insatisfeita com a superlotação e a desorganização do tráfego, destruiu alguns trâmueis.
Uma série de comícios foram organizados em abril e maio de 1930 contra o encarecimento da água e do esgoto, enquanto em julho a população denunciou na imprensa a qualidade e o método de cobrança da energia elétrica. Em agosto, os comerciantes retalhistas organizaram uma ruidosa assembleia para pressionar as autoridades públicas e empresariais contra o aumento dos telefones, o que realimentou a agitação popular contra a subsidiária da General Electric.
Compreende-se por meio dessa cronologia por que o Quebra-Bondes ocorreu em 1930, mas não por que se deu precisamente nos dias 4 e 5 de outubro. Essa questão é crucial para o entendimento não apenas da natureza do Quebra-Bondes, como de sua relação com a Revolução de 1930. Ao esclarecer os antecedentes de um motim de grande importância, irrompido em ocasião tão singular, mas pouco conhecido dos pesquisadores, o artigo pretende reabrir o debate clássico da historiografia brasileira, sobre a participação popular nos acontecimentos que culminaram na derrubada do primeiro regime republicano do Brasil.4
O estudo conclui mencionando parte dos elementos que permitirão estudar essa problemática noutro texto, a exemplo da exploração política do descontentamento contra a Circular pelas oposições, notadamente a seção baiana da Aliança Liberal (1929-1930). Os próprios contemporâneos, a começar pela força pública, identificaram e apontaram a possibilidade de existir uma relação entre o Quebra-Bondes e a Revolução de 1930.
Figura 4. População reúne-se na praça Rio Branco para comemorar o triunfo da Revolução de 1930.
O artigo permite argumentar que os manifestantes atribuíram às mudanças políticas nacionalmente em curso a marca de seu repúdio às consequências sociais das reformas urbanas conduzidas em Salvador entre 1928 e 1930.
Para ler o artigo, acesse
BRITO, J. Chico Projeto Reforma urbana e protesto social (Salvador, 1928-1930). Varia Historia [online]. 2024, vol. 40, e24010 [viewed 21 February 2025]. https://doi.org/10.1590/0104-87752024v40e24010. Available from: https://www.scielo.br/j/vh/a/wzkMp3xzqKfDzCzgngWhQkP/
Notas
1. SAMPAIO, C. Os partidos políticos na Bahia da Primeira República: uma política de acomodação. Salvador: Edufba, 1998, p. 234 ↩
2. SANTOS, M. A República do povo: sobrevivência e tensão. Salvador (1890-1930). Salvador: Edufba, 2001, p. 147 ↩
3. ANAFISCO. Dolarização no preço da energia elétrica prejudica indústria e sociedade brasileira. Disponível em: https://anafisco.org.br/. Acesso em: 22/1/2024 ↩
4. Sobre o debate: PANSARDI, M. Da revolução burguesa à modernização conservadora: a historiografia frente à revolução de 1930. Campinas: Unicamp (História, tese de doutorado), 2002↩
Referências
BRITO, J. Um Ás na Mesa do Jogo: a Bahia na história política da I República (1920-1926). Salvador: Edufba, 2019
Dolarização no preço da energia elétrica prejudica indústria e sociedade brasileira [online]. ANAFISCO. 2024 [viewed 21 February 2025]. Available from: https://anafisco.org.br/
NEGRO, L. A. and BRITO, J. Insurgentes incendeiam a cidade da Bahia. O Quebra Bondes e a Revolução de 30. Estudos Históricos (Rio de Janeiro) [online]. 2022, vol. 33, no. 71, pp. 579-599 [viewed 21 February 2025]. https://doi.org/10.1590/S2178-14942020000300008. Available from: https://www.scielo.br/j/eh/a/hsjGxXrdLDzVXF7ZWjrL3Fj/
PANSARDI, M. Da revolução burguesa à modernização conservadora: a historiografia frente à revolução de 1930. Campinas: Unicamp, 2002
SAMPAIO, N. C. Os partidos políticos na Bahia da Primeira República: uma política de acomodação. Salvador: Edufba, 1998
SANTOS, S. A. M. A República do povo: sobrevivência e tensão. Salvador (1890-1930). Salvador: Edufba, 2001
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