Dra. Fátima Teresinha Scarparo Cunha, professora associada, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Dr. Emerson Elias Merhy, professor titular, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
A pesquisa As redes vivas na produção do cuidado com o usuário na centralidade do tratamento para tuberculose multidroga resistente, publicada no periódico Interface – Comunicação, Saúde, Educação (vol. 28, 2024), destacou a importância como o vínculo direto de profissionais de saúde com o paciente de tuberculose, como suas relações familiares e do seu cotidiano contribuem de forma significativa para sua melhora e para quebra de estigmas e preconceito, em relação à doença.
O estudo analisou o caso de Zoe (nome fictício), uma mulher de 38 anos, moradora da comunidade situada no maciço da Tijuca – Borel, no Rio de Janeiro, que enfrentou dificuldades pessoais, socioeconômicas e abandonou o tratamento da tuberculose, levando à resistência da doença e, posteriormente, à necessidade do uso de esquema de medicamentos para multidroga resistente.
Os pesquisadores Janaina Aparecida de Medeiros Leung, Fátima Teresinha Scarparo, Emerson Elias Merhy e Afranio Lineu Kritski entrevistaram 14 pessoas que formavam a rede de viva de apoio à paciente, entre maio e julho de 2021, conforme a disponibilidade dos participantes e cumprindo o distanciamento referente à Covid-19, exigido na época.
Pôde-se observar como o acompanhamento contínuo da enfermeira Leung permitiu a integração entre os agentes de saúde da Atenção Primária, Atenção Especializada e os familiares, fortalecendo o suporte à paciente e inovando o processo de cuidado à usuária do sistema de saúde.
A pesquisa teve como ponto de partida o Ambulatório de Tisiologia Newton Bethlem do Instituto de Doenças do Tórax da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e revelou que Zoe enfrentava não apenas desafios clínicos, mas também barreiras estruturais, como a lentidão no agendamento de exames pelo sistema de regulação do município do Rio de Janeiro (SISREG), dificuldades de deslocamento devido ao acesso à comunidade, como por exemplo, deslocar-se por 750 metros de ladeira e mais 54 degraus até a unidade de atenção primária, além de um percurso de 16,5 km para unidade de atenção especializada uma vez por mês e a própria violência no território.
Ademais, os estigmas e preconceitos em relação à tuberculose agravaram seu isolamento e afetaram sua saúde emocional, prejudicando sua adesão ao tratamento. Diante dessas dificuldades, identificou-se a necessidade de um acompanhamento mais próximo, possibilitando novas estratégias para garantir a continuidade do tratamento.
Com reuniões entre equipes de diferentes pontos de atenção à saúde, uma vez que o Sistema Único de Saúde (SUS) é descentralizado e distribuído desde Atenção Primária à Especializada, e visitas frequentes à paciente, foi possível criar um vínculo mais forte e oferecer um atendimento terapêutico individualizado. Esse envolvimento ajudou Zoe a superar obstáculos e se adaptar melhor à rotina do longo período de tratamento, destacando a necessidade de estratégias que vão além dos protocolos tradicionais.
“A relação entre usuário e profissional de saúde, construção do vínculo, estar com o outro e conhecer o seu contexto, é essencial para o sujeito em tratamento para tuberculose que teve sua vida atravessada pelo tratamento. A falta de atenção dos profissionais pode prejudicar a confiança, afastar o paciente e intensificar estigmas e preconceitos,” ressaltou Leung ao longo da análise do estudo, citando que no cotidiano da assistência à saúde em seguir apenas protocolos rígidos os profissionais de saúde, muitas vezes buscam focar apenas na doença, nos indicadores e acabam rotulando pacientes como “abandonadores de tratamento,” sem avaliar os desafios individuais que eles enfrentam e distanciam do cuidado.
A primeira parte das entrevistas trouxe relatos sobre o preconceito vivenciado pelos participantes, como o distanciamento na tuberculose pulmonar, por ser uma doença transmissível, pela tosse, fala e espirros, gerando medo e angústia. “A maioria das pessoas se afastava de mim… tinha medo de mim, de pegar isso”, disse a irmã da Zoe que também adoeceu e tratou a tuberculose pulmonar, com resistência ao esquema básico.
A segunda trouxe falas de que o cuidado ocorre para além do instituído e que os profissionais também buscam modificar suas ações regimentares, sair do modus operandi. “O profissional tem que olhar para além de um diagnóstico e a partir desse momento observá-lo como um ser complexo, você tem que entender quais são as suas necessidades, quais são os seus obstáculos, qual a percepção desse usuário em relação a estar com tuberculose multirresistente,” afirmou um profissional.
Conforme dito, o acompanhamento próximo de Zoe não apenas foi feito na formação de um grupo de trabalho dentro de um conceito mais rígido e operacional, mas também se tornou uma ligação entre os profissionais da Atenção Primária, Atenção Especializada e gestores. “Tornou-se na verdade o entrelace entre os trabalhadores do cuidado da Atenção Primária, Atenção Especializada e gestores que escapava ao estabelecido diante da vivência da paciente, constituindo-se em encontros que ampliaram as possibilidades do cuidado baseados na tríade usuária, família e trabalhadores da saúde,” enfatizou a pesquisadora Leung.
Os pesquisadores concluíram que a centralidade do paciente no cuidado contribui para romper barreiras impostas pelo estigma da tuberculose resistente e que este sujeito conduza a equipe de saúde no seu tratamento, com a expansão de possibilidades e amplificando a voz do usuário em tratamento que, em geral, é silenciada diante da sua vida e do seu próprio tratamento. O estudo reforça a importância da integração entre profissionais, pacientes, familiares, comunidade, alinhando-se à Estratégia Global da Organização Mundial da Saúde (OMS) para erradicação da doença até 2035.
“A pesquisa acompanhou o percurso da paciente, adotando uma abordagem centrada no olhar dela, Zoe como usuária-guia, nos conduzindo por sua vida, suas experiências, sua vivência nas suas redes de cuidado, pois Zoe, pseudônimo escolhido e atribuído à paciente significa ‘vida,’ ‘cheia de vida,’ ‘vivente,’ pois em oito tentativas de tratamento ela sempre buscava às unidades e na nona ela conseguiu chegar ao final e concluir seu tratamento em agosto de 2023. A trajetória da construção do estudo foi um grande aprendizado, no qual compreendemos de forma concreta que em um tratamento não podemos separar o corpo físico clínico, do social, emocional e psicológico”, concluiu.
E assim aconteceu, Zoe concluiu seu tratamento e, após sete anos, foi curada, foi sorridente tocar o sino da unidade onde foi acompanhada, mas depois de todo o percurso nos deixou por falta da disponibilidade do broncodilatador para asma. Sua vida material foi extinta, porém deixou o legado de como o tratamento terapêutico institucionalizado que não considera o contexto do sujeito como único e que em várias situações têm uma assistência em saúde protocolar pode ser um obstáculo para o sujeito, mas a transformação no cotidiano do cuidado é uma possibilidade, pensar em saúde, com arte, com potência, com criatividade e pode ser modificado, reconstruído, na micropolítica do cuidado, à medida que se volta não só “para”, mas “com” o usuário. O trecho a seguir foi extraído da Tese de Doutorado de Leung (2023):
Vale ressaltar que, ao longo do percurso, conhecer tantas outras Zoe(s) presentes no caminhar do tratamento para tuberculose, seja sensível ou resistente, sinalizam que suas vidas estão para além do estabelecido e protocolar e que alguns momentos o prontuário, seja ele físico ou eletrônico, deverá ficar “de lado” para o profissional estar integralmente, inteiramente disponível ao ouvir, estar atento, olhar, se deixar afetar na relação com o sujeito à sua frente pois, como diz Cecília Meireles em a “Arte de Ser Feliz,” a janela pode ser a mesma, mas como você enxergará será a total diferença.
Para ler o artigo, acesse
LEUNG, J.A.M. As redes vivas na produção do cuidado com o usuário na centralidade do tratamento para tuberculose multidroga resistente. Interface – Comunicação, Saúde, Educação [online]. 2024, vol. 28, e230182 [viewed 14 March 2025]. https://doi.org/10.1590/interface.230182. Available from: https://www.scielo.br/j/icse/a/yHfyqB7jHHxStLyjVwn6pzQ/
Referências
LEUNG, J.A.M. A Tuberculose resistente a drogas e as redes de cuidado ao usuário no Sistema Único de Saúde. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2023
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