Qual o lugar da América Latina na historiografia das exposições internacionais?

Nelson Sanjad, pesquisador do Museu Paraense Emilio Goeldi; professor do Programa de Pós-Graduação em História na Universidade do Federal do Pará

Nos últimos 30 anos, as exposições internacionais tornaram-se fundamentais para pensar o nacionalismo e a globalização dos séculos XIX e XX, constituindo-se como um campo de investigações que diz respeito não apenas a questões políticas e econômicas, mas também às trocas culturais e à construção de identidades e alteridades. Entre as décadas de 1980 e 2010, ocorreu um boom de estudos sobre esses megaeventos, justamente quando se celebrou o aniversário das grandes mostras do período anterior à Primeira Guerra e novos olhares foram lançados sobre os eventos em si e também sobre a forma como passaram para a memória de cada país. Esse movimento de renovação historiográfica foi centrado, sobretudo, na análise do desenvolvimento industrial, do colonialismo, da expansão da burguesia e da urbanização. Ele deu, contudo, e talvez por essa razão, pouca visibilidade às exposições realizadas em países fora da Europa e da América do Norte, assim como à forma como esses países se fizeram representar nas mostras europeias e norte-americanas.

É esse o problema historiográfico analisado por Nelson Sanjad, pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi/MCTIC, no ensaio “Exposições internacionais: uma abordagem historiográfica a partir da América Latina”, publicado em História, Ciências, Saúde – Manguinhos (v. 24, n. 3, 2017). No texto, Sanjad analisa o conceito de “exposição internacional” e as principais correntes teóricas adotadas pelos investigadores da área, como as de matriz gramsciana/foucaultiana, antropológica e cultural, apontando para as dificuldades no enquadramento das mostras latino-americanas em um panorama teórico que entende a ‘modernidade’ e o ‘progresso’ a partir do contexto e das tradições intelectuais europeias. Em seguida, o autor analisa os principais temas relacionados às exposições internacionais, organizando-os em grupos, como os estudos de gênero e de público, raciais/étnicos, religiosos, arquitetônicos e urbanísticos, geopolíticos, de cultura material, artes e ciências. Há uma preocupação explícita em dialogar com trabalhos dedicados à América Latina, pontuando questões caras à historiografia da região, como a produção do ‘nacional’ em ex-colônias de economia agrícola e extrativista e a representação do território e de populações indígenas.

Stand da Borracha montado no Pavilhão do Brasil, Exposição Internacional das Indústrias e do Trabalho, Turim, 1911. Fotografia publicada em “O Estado do Pará na Exposição Internacional das Indústrias e do Trabalho em Turim, 1911. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Dr. João Antonio Luiz Coelho, Governador do Estado, pela Delegação Paraense” (Paris: Kauffmann, 1911).

Sanjad identifica os principais argumentos dos historiadores que se dedicaram às mostras latino-americanas, entre os quais a existência de um ‘paradoxo de representação’, isto é, de uma incongruência ou um contraste entre uma realidade pautada pela desigualdade, pela pobreza e pelo analfabetismo e o que era representado nos pavilhões nacionais por meio de imagens que celebravam o ‘moderno’ e o ‘progresso’ (ELKIN, 1999). Outro argumento importante para Sanjad, reiterado por diversos autores que analisaram mostras latino-americanas (PAREZO; MUNRO, 2010), é a invisibilidade ou idealização a que eram submetidas as populações indígenas e também a parcela subalterna da sociedade, como os escravos, operários e agricultores. Segundo Sanjad, a idealização não ocorria apenas em chave negativa, como quando os índios eram representados como seres primitivos ou degenerados em processo de civilização ou extinção, mas também em chave positiva, quando eram apresentados como mão de obra industriosa e disponível para empreendedores estrangeiros.

Um ponto relevante no ensaio de Sanjad é a crítica a alguns estudos sobre a representação do nacional, que tomam os objetos, as imagens, a arquitetura, o espaço cenográfico das mostras latino-americanas sem a necessária contextualização, isto é, sem investigar como foram selecionados e/ou produzidos, como se o Estado, essa figura abstrata, por si só, fosse capaz de produzi-los e como se fossem ícones consensuais da nacionalidade. Sanjad argumenta que é necessário investigar como a ‘nação’ era pensada por diversos grupos sociais e em diversos lugares de um mesmo país, e como as diversas formas de representa-la eram negociadas e disputadas. A tensão entre as diferentes regiões que formam um país, os grupos que controlam o poder central e a expectativa dos organizadores das exposições e do público visitante afetava diretamente as formas de representação do nacional, sendo fundamental identificar como ocorre esse processo e quais os agentes históricos envolvidos (ANDERMANN, 2009).

Ao final do ensaio, e após uma tentativa de síntese das questões colocadas por investigadores que se ocuparam das mostras latino-americanas, Sanjad sugere um caminho para superar o gap historiográfico existente entre os estudos realizados na Europa e nos Estados Unidos e aqueles que tiveram lugar na América Latina. Em primeiro lugar, seria necessário assumir que as exposições internacionais tiveram significados bastante diferentes em países industrializados e imperialistas e em ex-colônias, como as latino-americanas. Em segundo lugar, deve-se superar barreiras linguísticas e políticas que impedem autores anglófonos e francófonos – inclusive os que estudam a América Latina – de considerar, em suas análises, a produção historiográfica desenvolvida na região. Essa produção segue sendo largamente, e injustificadamente, ignorada nos Estados Unidos e na Europa, apesar da expansão do campo, das ferramentas de busca disponíveis na internet e de sua ótima qualidade. Uma possível causa desse problema seria, segundo Sanjad, a prevalência de um arcabouço teórico que privilegia o desenvolvimento industrial e o Estado-Nação como chaves de acesso às exposições internacionais, deslocando, a priori, as mostras realizadas na América Latina para a margem do interesse dos investigadores.

O desenvolvimento de abordagens centradas na antropologia e nos estudos culturais possibilitou, a partir da década de 1990, a emergência de novos objetos de estudo e de agentes históricos antes invisíveis, incluindo em exposições extra-europeias. Sanjad argumenta que esse movimento renovador pode ser expandido e fortalecido se novas correntes teóricas forem consideradas, sobretudo as que deslocam, da análise, a centralidade do Estado-Nação, como a história global, a world history e a história transnacional. Sanjad considera esta última corrente de particular interesse, pois permite uma associação com a história cultural e os estudos comparados, além de manter um diálogo com a história nacional, regional e local. O foco dessa corrente seriam as ‘comunidades transnacionais’, isto é, os agentes históricos que atuam através de fronteiras nacionais, mas que sustentam e dão forma às identidades de instituições, espaços sociais e geográficos específicos – incluindo o Estado-Nação. O caráter multicultural e multinacional dessas comunidades permitiria uma abordagem que valorizasse a sociedade e a cultura como esferas autônomas do interesse histórico, desatrelando-as das ações governamentais e diplomáticas.

Outra característica da história transnacional seria a circulação, o intercâmbio e a tradução de ideias ou conhecimentos para contextos diferentes. Diferentemente da história global e world history, esses processos não precisam, necessariamente, ter uma amplitude mundial. Eles podem ser específicos de uma nação, localidade ou mesmo grupo social, como, por exemplo, o estudo da recepção, negociação e apropriação de textos, imagens, objetos e conhecimentos em perspectiva transcultural. Ou o estudo da intellectual life across borders, isto é, da circulação humana, de trajetórias individuais ou de grupos que viveram ou circularam por diferentes contextos nacionais.

Para Sanjad, essa perspectiva abre enormes possibilidades para a investigação das exposições nacionais e internacionais, as quais poderiam ser compreendidas como um sistema cultural transnacional, isto é, como um conjunto de princípios e práticas, continuamente adaptado e transformado, que circula intensamente pelo mundo desde o século XIX, conectando pessoas, tempos e lugares. Pensar nas mostras latino-americanas como partes de um sistema descentralizado que se ampliou e transformou ao longo do tempo e do espaço, permitiria incluí-las, segundo Sanjad, em um panorama mundial, complexo e diverso. Exigiria, contudo, um esforço de investigação que considerasse a constituição das comunidades intelectuais que conceberam, apoiaram e materializaram as exposições latino-americanas, e como essas comunidades interagiram com as de outros países, que conceitos e práticas adotaram, por onde circularam, que ideias fizeram circular sobre nação, progresso, raça, classe, gênero, cultura e natureza, entre outras. Exigiria, ainda, a análise da produção do nacional como uma via de mão dupla, isto é, observando tanto as negociações políticas internas quanto os intercâmbios transculturais, nos quais textos, objetos, imagens, edificações, espetáculos, alimentos etc. ganham uma dimensão simbólica capaz de influenciar processos identitários de diversos grupos sociais no próprio país e em outros países.

Construído com evidentes preocupações didáticas, o ensaio de Sanjad faz parte de um conjunto de textos historiográficos e teóricos que os editores de História, Ciências, Saúde – Manguinhos começaram a publicar neste número e que tem uma dupla finalidade: ampliar a inserção internacional da revista e celebrar seus 25 anos, a serem completados em 2019. O projeto tem o apoio da Wellcome Trust e prevê a publicação, nos próximos dois anos, de textos sobre os principais temas abordados ao longo da trajetória da revista. Nelson Sanjad, Editor Adjunto da revista, inaugurou o projeto com uma análise rara sobre um assunto que toca diferentes disciplinas, como a história, a antropologia e a museologia, e que interessa a investigadores de diversos países.

Referências

ANDERMANN, J. Tournaments of value: Argentina and Brazil in the Age of Exhibitions. Journal of Material Culture, v. 14, n. 3, p. 333-363, 2009. ISSN: 14603586 [reviewed 14 November 2017]. DOI: 10.1177/1359183509106424. Avaliable from: http://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/1359183509106424

ELKIN, N. C. Promoting a New Brazil: National Expositions and Images of Modernity, 1861-1922. Thesis (PhD in History) – Rutgers University, New Jersey, 1999.

PAREZO, N. J., MUNRO, L. Bridging the Gulf: Mexico, Brazil, and Argentina on display at the 1904 Louisiana Purchase Exposition. Studies in Latin American Popular Culture, v. 28, p. 25-47, 2010. ISSN: 2157-2941 [reviewed 14 November 2017]. Avaliable from: https://arizona.pure.elsevier.com/en/publications/bridging-the-gulf-mexico-brazil-and-argentina-on-display-at-the-1

SANJAD, N. Exposições internacionais: uma abordagem historiográfica a partir da América Latina. Hist. cienc. saude-Manguinhos, v. 24, n. 3, p. 785-826, 2017. ISSN: 0104-5970 [viewed 14 November 2017]. DOI: 10.1590/s0104-59702017000300013. Disponível em: http://ref.scielo.org/gz6my3

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SANJAD, N. Exposições internacionais: uma abordagem historiográfica a partir da América Latina. Hist. cienc. saude-Manguinhos, v. 24, n. 3, p. 785-826, 2017. ISSN: 0104-5970 [viewed 14 November 2017]. DOI: 10.1590/s0104-59702017000300013. Disponível em: http://ref.scielo.org/wh8d5r

Link externo

História, Ciências, Saúde-Manguinhos – HCSM: http://www.scielo.br/hcsm

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

SANJAD; N. Qual o lugar da América Latina na historiografia das exposições internacionais? [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2018 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2018/01/22/qual-o-lugar-da-america-latina-na-historiografia-das-exposicoes-internacionais/

 

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