Carolina Othero, colaboradora da Varia Historia e mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil
Varia Historia (v. 34, n. 64), apresenta o artigo “Recolher as âncoras em busca de liberdade: gênero e viagem em Nísia Floresta (Europa, 1856-1855)”, de Ludmila de Souza Maia, pós-doutoranda do Departamento de História da Rice University. Nísia Augusta Floresta (1810-1885) foi uma importante intelectual brasileira. Ela publicou vários textos na imprensa periódica do seu tempo, escreveu livros de diferentes naturezas e ainda montou e comandou uma escola para moças no Rio de Janeiro, no final da década de 1830. O artigo de Maia concentra-se em uma parte específica da trajetória de Nísia: sua experiência como escritora e como viajante.
Em 1856, Nísia partiu com sua filha Lívia para a Europa, onde viveu até sua morte, em 1885. Como outras mulheres viajantes de seu tempo, ela só pôde lançar-se a uma vida itinerante após cumprir o que era considerado, à época, suas “obrigações femininas”: o cuidado dos filhos, do marido e dos pais. Com a viuvez, a morte da mãe e a emancipação do filho mais velho, a escritora pôde, então, partir em busca de novas experiências e de uma vida mais livre das amarras e das expectativas da sociedade burguesa e patriarcal para mulheres de alta condição social, como era o caso dela (LAPIERRE; MOUCHARD, 2007).
As experiências de Nísia e de sua filha na Europa são analisadas no artigo a partir dos relatos de viagens produzidos pela escritora entre 1856 e 1872, e publicados na França. Nesses relatos, a escritora descreveu seus deslocamentos por países como Alemanha, Itália e Grécia, construindo uma narrativa subjetiva, de caráter autobiográfico e confessional. Ludmila Maia investiga essa literatura de viagem produzida por Nísia a partir de algumas questões centrais, entre elas: de que forma a viagem poderia se configurar como uma experiência de maior liberdade de gênero para uma mulher do século XIX? Como Nísia lidou com as expectativas e padrões sociais que envolviam e demarcavam o feminino em sua época? Para além desses problemas relativos às questões de gênero, Maia mostra como as viagens foram, para Nísia, experiências de formação intelectual, motivadas pela busca de conhecimento e pela curiosidade de vivenciar os grandes acontecimentos de seu tempo. Viajar era também uma forma de satisfazer um desejo de instrução e de educação, tão restritas para mulheres brasileiras naquele período.
Vários trechos dos relatos analisados por Maia evidenciam essa faceta da vida de viajante de Nísia: para ela, a viagem era um momento privilegiado de aprendizagem e de contato com aquilo que leu e conheceu ao longo da sua trajetória intelectual. A literatura de viagem de Nísia está repleta de referências ao passado dos lugares que visitou, já que a escritora dedicava grande atenção aos “monumentos antiquíssimos” com os quais se deparava. Na Itália, por exemplo, ela se interessou pelo “passado grandioso” da civilização romana e pelas obras do Renascimento. Nos seus relatos sobre suas viagens pela Alemanha, referiu-se à história de reis como Carlos Magno e Clovis II. As guerras de unificação italiana, que ocorreram durante boa parte do século XIX, também chamaram a atenção de Nísia. Ela não apenas relatou o que viu do conflito italiano, como também opinou abertamente sobre ele. Ao analisar esses escritos de Nísia sobre as guerras de unificação italiana, Ludmila Maia mostra como a autora queria ser “testemunha dos grandes eventos políticos” do seu tempo, e, com isso, como ela adentrou no domínio da política e da vida pública, esferas que eram pouco abertas à mulheres e autoras. Dessa forma, a partir do artigo de Maia, fica claro como Nísia produziu, nesses relatos, não apenas uma narrativa autobiográfica, mas também uma análise histórico-cultural e política dos espaços por onde passou, o que faz de sua obra um documento interessante para uma história intelectual cada vez mais aberta para a atuação de mulheres escritoras.
Além dessa dimensão intelectual, Maia mostra como as viagens foram permeadas pela procura de prazer e de diversão, encontrados em passeios, óperas, balés e casas de jogos. Dessa forma, a vida itinerante de Nísia permitiu a ela maior liberdade de circulação, bem como uma busca por autonomia e realização pessoal, que dificilmente seriam possíveis dentro do “ideal burguês de reclusão para as mulheres de alta classe”. No entanto, por mais que as práticas e a própria trajetória de Nísia apontem para a relativa liberdade de gênero possibilitada por sua vida de viajante e escritora, sua narrativa em muitos momentos confirma o lugar da mulher “no universo da delicadeza, da sensibilidade, da religião e da maternidade”. Isso porque a escritora se apresenta como mulher respeitável, preocupada com a honra e a segurança, mãe zelosa e viúva dedicada à memória do marido. De forma curiosa, a retórica dos seus escritos conciliava-se com as regras e normas das quais ela se distanciava em sua trajetória e experiências. Assim, há nos relatos, uma tensão entre a vivência da liberdade e o dever com as obrigações femininas. Tensão essa que é compreensível quando pensamos que a autora viveu e construiu sua subjetividade numa sociedade que atrelava o feminino automaticamente à domesticidade e à maternidade.
Atenta a essas tensões e contradições, Ludmila Maia apresenta-nos em seu artigo uma análise que mostra as estratégias que Nísia encontrou para flexibilizar as rígidas regras e demarcações de gênero vigentes no século XIX, fazendo-nos pensar sobre a capacidade dos sujeitos históricos de negociar com as normas sociais, por mais fixas que elas pareçam ser.
Referência
LAPIERRE, A. and MOUCHARD, C. Elles ont conquis le monde: les grandes aventurières 1850-1950. Paris: Arthaud, 2007.
Para ler o artigo, acesse
MAIA, L. S. Recolher as âncoras em busca da liberdade: Gênero e viagem em Nísia Floresta (Europa, 1856-1885). Varia hist. [online]. 2018, vol.34, n.64, pp.165-191. [Viewed 3 July 2018]. ISSN 0104-8775. DOI: 10.1590/0104-87752018000100006. Available from: http://ref.scielo.org/rwc9df
Links externo
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