Por Priscilla de Almeida Nogueira da Gama, membro da equipe editorial da Revista Brasileira de Política Internacional – RBPI, Brasília, DF, Brasil e Antônio Carlos Lessa, editor-chefe da Revista Brasileira de Política Internacional – RBPI, Brasília, DF, Brasil
A Coréia do Norte é certamente um dos grandes mistérios que assombram analistas de Relações Internacionais pelos quatro cantos do mundo. A ascensão ao poder de Kim Jong Un em dezembro de 2011, o terceiro líder da “dinastia” que se apoderou daquele país asiático ainda ao final da Segunda Guerra Mundial, tornou o desafio de explicar a Coreia do Norte ainda mais complexo. Afinal de contas, o regime norte-coreano teria encontrado os seus limites? Há possibilidades de renovação para o regime no horizonte? Estariam se configurando as condições para uma transição administrada em Pyongyang?
Ao mesmo tempo em que a Coreia do Norte se torna a cada dia o motivo de mais dúvidas sobre o seu futuro e razão de inquietações no Ocidente, se percebe uma discreta transição, que se inicia com o reposicionamento dos atores tradicionais no tabuleiro político, a exemplo do Partido Comunista, mas que se faz com a manutenção de uma política externa agressiva e desafiadora.
A observação in loco dessa realidade permitiu a Paulo Fagundes Vizentini e Analúcia Danilevicz Pereira, professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o levantamento de dados inéditos sobre a realidade do regime norte-coreano. O artigo “A discreta transição da Coreia do Norte: diplomacia de risco e modernização sem reforma” oferece uma primeira aproximação dessa agenda de pesquisa complexa.
Os autores falaram sobre a sua estratégia de investigação em entrevista concedida a Priscilla de Almeida Nogueira da Gama e Antônio Carlos Lessa da Revista Brasileira de Política Internacional.
1. Como abordado no decorrer do artigo, a Coréia do Norte é tida, diversas vezes, como um país governado por pessoas incapacitadas, com atitudes imprevisíveis. Contudo, quando analisada minuciosamente a política norte coreana apresenta-se sólida e bem estruturada. Por que, na sua opinião, existe a tendência de se analisar a Coreia do Norte como um país governado por “fanáticos”?
Há um fator histórico e outro geopolítico. O primeiro tem a ver com o fato de que a Guerra da Coreia foi a primeira “não vencida” pelos EUA e diversos incidentes (como o apresamento do navio espião Pueblo pela RPDC) foram humilhantes para Washington. Além disso, contrariando as expectativas, o regime sobreviveu ao colapso da URSS e não demonstra sinais de que ruir facilmente. O segundo está relacionado à necessidade de manter o Japão e a Coreia do Sul na aliança americana, o que só pode ser conseguido mantendo presença militar contra uma suposta ameaça, a Coreia do Norte. Mas, ao mesmo tempo, o objetivo maior é ter uma posição militar contra a China e, secundariamente, contra o oriente russo. Uma Coreia do Norte exageradamente ameaçadora legitima tal política.
2. Apesar das diversas sanções impostas e das crises econômicas vividas pelo país o regime norte-coreano parece não estar entrando em declínio. De fato, após a ascensão de Kim Jong Un o regime parece ter se reerguido. Como a Coreia do Norte conseguiu ultrapassar essas turbulências?
Na realidade, a grande crise dos anos 1990 foi apenas parcialmente superada. E a situação atual é diferente da pré-crise. Os mercados privados, tolerados pelo governo durante a crise, seguem existindo e expandindo, mas não foram legalizados, como na China. Então, há um equilíbrio precário, mas que não interessa a ninguém romper. Um colapso seria uma derrocada de todos. Além disso, apesar dos bloqueios, os investimentos chineses e de outros países permitiram ao país voltar a crescer e a melhorar a vida cotidiana da população.
3. A Coreia do Norte utiliza a nuclearização como forma de barganha e de manutenção do status quo na região, pois desde a Guerra Fria o país vive sob a percepção de uma ameaça constante. Essa percepção conduz Pyongyang a assumir que jamais abandonará seu programa nuclear, pois é uma forma de manutenção de sua segurança. Para contornar essa situação, os analistas propõem o estabelecimento de um modus vivendi entre as Coreias preferivelmente a um status quo. Diante de seus estudos, como poderia ser estabelecido esse modus vivendi? Esse modus vivendi é plausível diante da atual conjuntura da região?
Na verdade já existe um modus vivendi, e muito dos incidentes são jogos calculados para fins internos ou externos. Curiosamente, ninguém deseja a reunificação: o Japão teme que uma Coreia reunificada possa virar uma concorrente mais séria; os EUA perderiam a razão de ser de sua presença militar e política na região; a Rússia perderia um espaço onde ainda é relevante politicamente; a China não deseja ter um país capitalista desenvolvido em sua fronteira e perder o Estado Tampão socialista; a Coreia do Norte não deseja porque seria absorvida; e a do Sul teria de pagar um custo elevado, inicialmente (a população não quer perder seu elevado padrão de vida para “ajudar” os irmãos do norte). Assim, por paradoxal que possa parecer, o que a RPDC deseja é um tratado de paz com os EUA (Paenmunjon foi apenas um cessar-fogo) e a garantia de apoio econômico e respeito ao seu regime (e elite dirigente).
4. Kim Jong Un, desde que assumiu o mandato, tem promovido diversas modificações internas (tentativa de modernização) e buscado apoio internacional de seus vizinhos a fim de diminuir seu isolacionismo. Essa modernização própria, entretanto, não vem acompanhada de reformas. De acordo com seus estudos, é possível que a Coreia do Norte consiga promover a modernização que almeja sem instituir reformas internas?
Quando se fala em “reformas”, a referência é o modelo chinês, que implica, junto, certa abertura econômica externa. Na China deu certo porque o país era poderoso, imenso e aliado dos EUA nos anos 1970 e 1980. No caso coreano, há o sul e a China, economicamente poderosos, e o cenário das reformas acabaria num colapso não apenas do regime, mas também das limitadas forças econômicas privadas do país (repetindo o cenário da Alemanha Oriental). Então, o modelo é construir zonas econômicas especiais (longe da capital), buscando investimentos externos e mantendo o delicado equilíbrio interno entre público e privado. Enquanto isso, há um forte investimento na qualificação científica (inclusive do exército) para, numa possível futura conjuntura mais propícia, modernizar o país sem promover reformas que ameacem o regime e a elite dirigente.
Para ler o artigo, acesse:
VIZENTINI, P.F., and PEREIRA, A.D. A discreta transição da Coreia do Norte: diplomacia de risco e modernização sem reforma. Rev. bras. polít. int. [online]. 2014, vol. 57, n° 2, 176-195. [viewed February 26th 2015]. ISSN 0034-7329. DOI: 10.1590/0034-7329201400310. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-73292014000200176&lng=en&nrm=iso
Link externo:
Revista Brasileira de Política Internacional – http://www.scielo.br/rbpi/
Paulo Fagundes Vizentini – Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil, e-mail: paulovi@ufrgs.br
Professor Titular de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pós-doutorado em Relações Internacionais pela London School of Economics (1997), Doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo (1993), Mestre em Ciência Política pela UFRGS (1983), Bacharel e Licenciado em História pela UFRGS (1980). Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais FCE/UFRGS (2010-2014). Diretor do Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados da UFRGS (1998-2002) e Secretário de Relações Internacionais da Reitoria da UFRGS (2004-2008). Professor Visitante no NUPRI/USP, na Universidade de Leiden e Pesquisador no International Institute for Asian Studies e no Centro de Estudos Africanos (Leiden Univ, Holanda). Coordenador do Núcleo Brasileiro de Estratégia e Relações Internacionais/NERINT e Coordenador do Centro Brasileiro de Estudos Africanos/CEBRAFRICA. Editor de AUSTRAL: Revista Brasileira de Estratégia e Relações Internacionais. Especialidade: História Mundial Contemporânea, Relações Internacionais Contemporâneas e Política Externa Brasileira. Ocupou a Cátedra Rio Branco de Relações Internacionais 2014 na Universidade de Oxford.
Analúcia Danilevicz Pereira – Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil, e-mail: ana.danilevicz@ufrgs.br
Professora de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais/UFRGS. É Doutora em História pela UFRGS com Especialização em Processos de Integração na Ásia, Europa e América Latina pela Universiteit Leiden – Holanda. Pesquisadora do Núcleo Brasileiro de Estratégia e Relações Internacionais – NERINT e do Centro Brasileiro de Estudos Africanos – CEBRAFRICA. Realiza atividades de ensino e pesquisa na área de História e de Relações Internacionais, especialmente em História Mundial Contemporânea, Relações Internacionais Contemporâneas (ênfase em África e Oriente Médio) e Política Externa Brasileira.
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