Por Rodrigo Mavignier Corrêa Silva, membro do Laboratório de Análise de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil, Priscilla de Almeida Nogueira da Gama, membro da equipe da Revista Brasileira de Política Internacional – RBPI, Brasília, DF, Brasil, e Antônio Carlos Lessa, editor-chefe da Revista Brasileira de Política Internacional – RBPI, Brasília, DF, Brasil
A Doutrina Monroe marcou de modo definitivo a política externa dos Estados Unidos para a América Latina ao longo do século XIX. Anunciada pelo Presidente James Monroe em 1823 e universalmente conhecida pelo aforismo “a América para os americanos”, a Doutrina foi interpretada como um símbolo marcante do imperialismo dos Estados Unidos. O contexto da formulação da Doutrina certamente influenciou o entendimento comum de que se tratava de um comando de ação dos Estados Unidos para toda a América Latina.
No artigo publicado na Revista Brasileira de Política Internacional (RBPI vol. 57, jul. dez. 2014) intitulado “Uma Política para o continente – reinterpretando a Doutrina Monroe” o professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Carlos Gustavo Poggio Teixeira, demonstra que aquela diretriz fundamental da política externa dos Estados Unidos teria foco no Caribe, e não necessariamente na América Latina. O autor desse estudo inédito que rediscute a Doutrina Monroe falou sobre o tema da sua pesquisa em uma entrevista concedida a Rodrigo Mavignier Corrêa Silva, membro do Laboratório de Análise em Relações Internacionais da Universidade de Brasília, a Priscilla de Almeida Nogueira da Gama, membro da equipe editorial da RBPI, e Antônio Carlos Lessa, editor-chefe da Revista.
1. Você esclarece que países da América do Sul como o Brasil, o Chile e a Argentina, por diferenciarem-se dos demais integrantes da América Latina no que se refere à estabilidade política após os processos de independência, representavam motivos de redução da abrangência da Doutrina Monroe à região ‘caribenha’. Nesse sentido, você enxerga esse processo como uma via de mão dupla? Em outros termos, em que medida você concebe a estabilidade política da América do Sul, assim como a formação do subsistema sul-americano, como resultado da falta de interesse dos EUA de, efetivamente, estenderem os instrumentos da Doutrina Monroe a essa região?
Não creio que a (relativa) estabilidade dos países da América do Sul em relação aos países centro-americanos tenha a ver com a menor presença dos EUA no primeiro. Ou seja, nesse caso a estabilidade política é a variável independente e a presença norte-americana é a variável dependente. Grande parte do meu trabalho parte do sentido de olharmos para os países mais periféricos do sistema internacional, em especial aqueles que são potências regionais, não apenas como objetos, mas também como sujeitos. Isso passa necessariamente por relativizar o papel das grandes potências como fonte de todo bem ou de todo o mal nas regiões consideradas de sua influência e olhar mais tanto para as dinâmicas domésticas como para as que eu classifico de subsistêmicas. Nesse sentido, acredito que nem a instabilidade nem a estabilidade política dos países americanos podem ser explicadas unicamente em função da presença ou ausência dos Estados Unidos. O que eu tento demonstrar é que o contrário parece ser mais verdadeiro, ou seja, no período estudado pelo artigo, a fragilidade política (real ou percebida) tendia a estar relacionada com a presença dos Estados Unidos ao passo que a estabilidade tendia a estar relacionada com a ausência, o que por sua vez foi uma das variáveis que levaram à consolidação de um subsistema distinto na América do Sul.
2. Tendo em vista o pressuposto de que a Doutrina Monroe é um dos princípios mais longevos de política externa dos Estados Unidos e o posicionamento oficial do Secretário de Estado dos Estados Unidos, John Kerry, em discurso na Organização dos Estados Americanos (OEA) em 18 de novembro de 2013, como você enxerga a percepção e a atuação dos EUA frente à formação de blocos regionais, como a UNASUL, e a busca, pelo Brasil, de um papel hegemônico no escopo geográfico que ultrapassaria os limites da Doutrina Monroe?
Esses fenômenos estão intimamente relacionados com as dinâmicas das relações interamericanas tal como abordado pelo artigo. O que a formação de blocos como a UNASUL demonstra é que estamos diante de um processo de crescente institucionalização do subsistema sul-americano, o que é na verdade resultado dos processos que identifiquei no artigo. As funções da UNASUL, incluindo a criação de um conselho de defesa sul-americano, competem diretamente com as funções da OEA que por sua vez tem se tornado crescentemente irrelevante para os países da América do Sul. Quanto ao pretenso “papel hegemônico” do Brasil, faria duas observações. Primeiro, que de nenhuma forma esse papel ultrapassa o escopo geográfico da Doutrina Monroe, ou seja, se existe alguma pretensão hegemônica, ela não ultrapassa o canal do Panamá. E segundo, que esse “papel hegemônico” pode ser melhor caracterizado como aquilo que Thomas Pedersen classificou de “hegemonia cooperativa”, ou seja, a tentativa de se construir um papel hegemônico não através de meios militares, o que seria inviável para um país como o Brasil, mas através da concertação política a partir da consolidação de uma estrutura multilateral que faça com que os Estados da região convirjam para posições de interesse do Brasil. É nesse contexto que o processo histórico que culminou com a criação da UNASUL deve ser compreendido.
3. Em se tratando do elemento discursivo da Doutrina Monroe em contraste com o processo histórico revelado, você justifica o caráter distinto adquirido pela doutrina na América do Sul em função de fatores geográficos e políticos. Você concorda que, atualmente, os argumentos geográficos não se sustentam? Por quê?
De forma alguma. Se existe alguma outra característica definidora do sistema internacional além da anarquia, é o fato de que os Estados são unidades que estão fixas no espaço, ou seja, que não se movem. Claro que fronteiras mudam, Estados desaparecem e hoje em dia é muito mais fácil (porém ainda muito caro) do que na época da Doutrina Monroe projetar poder em regiões distantes. Mas isso está longe de significar que a geografia não continua ou não continuará sendo uma força poderosa. Ou seja, o fato de o México fazer fronteira com os Estados Unidos e a Argentina com o Brasil é e continuará sendo um dado central para entendermos as políticas externas desses países.
4. Considerando o panorama atual das relações internacionais norte americanas em face das recentes descobertas acerca da vigilância cibernética envolvendo, entre outros países, o Brasil, como você enxerga o processo de aproximação deste aos Estados Unidos no contexto de busca pela primazia na América do Sul?
Entendo que a correta distância histórica vai demonstrar que o episódio da espionagem terá sido mais uma rusga passageira do que um momento definidor das relações do Brasil com os Estados Unidos. Visto do ponto de vista estrutural, existem outros fatores permanentes muito mais relevantes para a relação bilateral do que eventuais contratempos que, diga-se de passagem, já ocorreram outras vezes. Lembro, apenas para ficar em um exemplo, a suspensão de acordos militares com os Estados Unidos durante o governo Geisel em virtude de problemas causados pelo foco na questão dos Direitos Humanos pela administração Carter. Da mesma forma que Carter veio ao Brasil logo depois desse episódio, a imprensa noticiou uma conversa entre Dilma e Obama durante a reunião do G-20 em novembro sobre uma possível visita da presidente brasileira aos Estados Unidos, o que deve ocorrer muito provavelmente durante o segundo mandato dela. Além disso, não acredito que exista atualmente qualquer pretensão dos Estados Unidos em buscar uma “primazia” na América do Sul. Na verdade, desde o fim das negociações da ALCA, a tendência tem sido muito mais para a negligência da América do Sul do que para uma política externa ativa que busque primazia ou qualquer outro objetivo mais coerente de política externa para a região.
Para ler o artigo, acesse
TEIXEIRA, C.G.P. Uma política para o continente – reinterpretando a Doutrina Monroe. Rev. bras. polít. int. [online]. 2014, vol.57, n° 2, pp. 115-132. [viewed March 2th 2015]. ISSN 0034-7329. DOI: 10.1590/0034-7329201400307. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-73292014000200115&lng=pt&nrm=iso
Link externo
Revista Brasileira de Política Internacional – www.scielo.br/rbpi
Carlos Gustavo Poggio Teixeira – Departamento de Política da Faculdade de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil, e-mail: cgpteixeira@gmail.com
PhD em International Studies pela Old Dominion University (Virgínia, EUA) com título de doutor reconhecido no Brasil pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP), onde atualmente é professor. Bacharel em Administração pela Universidade Mackenzie e em Relações Internacionais pela PUC-SP, onde atualmente é professor e vice-coordenador do curso de Relações Internacionais. Professor do curso de graduação e pós-graduação em Relações Internacionais da FAAP. Últimos livros publicados incluem Brazil, the United States, and the South American Subsystem (Lexington, 2012), apontado pela revista "Foreign Affairs" como um dos melhores livros de relações internacionais de 2012, e O Pensamento Neoconservador em Política Externa nos Estados Unidos (UNESP, 2010), baseado na dissertação de mestrado vencedora do Prêmio Franklin Delano Roosevelt de estudos sobre os Estados Unidos (2008).
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