A medicalização na escola

Ana Carolina Christofari, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil

edreal_logoA medicalização é um processo que tem se alastrado para todas as esferas da vida. Problematizar o processo de medicalização não é algo recente. Já nos anos de 1960, quando surgiu esse termo, segundo Gaudenzi e Ortega (2012), discutiam-se as estratégias de controle da vida humana, cada vez mais intensas, pela medicina. Falamos de medicalização quando queremos referir que algo se tornou médico, portanto alvo de um olhar clínico, que analisa, diagnostica e prescreve formas de tratar o problema. A medicalização é um dispositivo de gestão, de condução e controle dos corpos, tendo como base os saberes produzidos pela medicina. A medicina torna-se um saber-poder que “[…] incide ao mesmo tempo sobre o corpo e sobre a população, sobre o organismo e sobre os processos biológicos e vai, portanto, ter efeitos disciplinares e efeitos regulamentadores” (Foucault, 2010, p. 212). O pensamento de Michel Foucault torna-se basilar na discussão da medicalização quando esta é vista a partir da relação saber-poder que está em jogo quando falamos de escola. Os saberes médicos utilizados para colocar a medicalização em funcionamento têm efeitos de verdade que fortalecem determinados discursos e que se enredam nas práticas pedagógicas, direcionando os modos de olhar e de se relacionar com o outro.

No ambiente escolar a medicalização é um processo de produção discursiva que justifica as dificuldades de aprendizagem, os comportamentos, ou seja, questões atinentes às situações cotidianas vividas nesse contexto, como sintomas de patologias. A identificação de problemas de aprendizagem como efeitos de um possível distúrbio, transtorno, síndrome ou deficiência influenciou significativamente na construção de um olhar pautado na racionalidade médica em relação aos modos de aprender e de ser na escola. Nessa linha de raciocínio, onde os modos de ser e de aprender na escola ingressam em uma análise que busca a patologia ao invés das potencialidades de cada um, as ciências médicas são, cada vez mais, convocadas pela escola a falarem sobre esses sujeitos. Suas falas ocupam um lugar de definição das capacidades cognitivas, muitas vezes direcionando o discurso pedagógico a uma visão mecanicista da vida.

O artigo Medicalização dos Modos de Ser e de Aprender foi construído com base na discussão que é desenvolvida na pesquisa de doutorado intitulada Modos de Ser e de Aprender na Escola: medicalização (in)visível. A pesquisa analisa os discursos que compõem os registros escolares dos alunos que frequentam um serviço de Atendimento Educacional Especializado, problematizando como são produzidos os modos de ser e aprender desses alunos no espaço escolar. O serviço de atendimento educacional especializado é realizado em um espaço chamado de Sala de Integração e Recursos em que, entre outras funções, são construídas estratégias pedagógicas e de acompanhamento para alunos considerados com deficiência, com transtornos globais de desenvolvimento e altas habilidades.

A partir da análise discursiva produzida nesse espaço escolar, é possível destacar enunciados pautados em uma racionalidade médica com base em afirmações como: ela nunca vai aprender a mesma coisa do que os outros. Está aqui, porque hoje em dia essas crianças não podem mais ficar trancadas em casa. Ou então: coitadinha, ela não entende nada do que se passa em sala de aula, não sei por que não está em uma escola especial. Que doença ela tem?

Nesse sentido, a escola é o lócus propulsor de práticas discursivas que constituem diferentes tipos de alunos, dos quais a categoria do anormal tem se ampliado. Ele não aprende porque é hiperativo, precisava tomar um remedinho para se acalmar. Esse enunciado, que regularmente aparece no interior escolar, pode ser visto como uma prática que se utiliza de uma racionalidade médica para justificar ou mascarar a dificuldade da escola em trabalhar com determinados alunos. Desse modo, essa prática aponta o problema como sendo do indivíduo e não das relações, dos encontros ou do contexto. Há uma necessidade em encontrar e declarar o culpado pelo fracasso escolar considerando, de maneira geral, o sujeito, sua dinâmica familiar, sua situação econômica, sua constituição orgânica e suas condutas os únicos responsáveis. É possível percebermos, por meio de expressões presentes no âmbito escolar como distúrbios, disfunção, limitação, atraso, as relações que geralmente são feitas entre doença, deficiência e não-aprendizagem. Essas expressões indicam uma prática de patologização dos modos de aprender que acabam por produzir a medicalização. Desse modo a escola, muitas vezes, se exime de construir um trabalho específico para as singularidades do aluno e o envia a serviços da saúde para que estes possam resolver o problema. Vimos com isso, muitas crianças ficarem desassistidas na escola. As justificativas mais comuns em relação à situação escolar de crianças que são consideradas com dificuldades no processo de aprendizagem, principalmente no que se refere à aquisição da leitura e da escrita, relacionam-se aos comportamentos dos alunos na escola, à organização familiar e aos modos que conduzem suas vidas, a situações que indicam fatores de hereditariedade e genéticos como causadores dos problemas escolares.

A problematização em relação à medicalização no contexto escolar nos permite afirmar que os alunos que escapam, rompem e se produzem como linhas de fuga, instauram um curto-circuito nas organizações escolares e introduzem novos modos de ser e de aprender, onde deveria haver a regra, a norma, o hábito. Esses alunos direcionam o olhar para os modos de ser e aprender que não se pareçam com nenhuma daquelas formas institucionalizadas, medicalizadas, mas que podem dar lugar a uma outra cultura. Inventam modos de ser e de aprender improváveis, traçando linhas diagonais na organização escolar, linhas que permitem aparecer novos modos de ser.

Para ler os artigos, acesse:

CHRISTOFARI, A. C., FREITAS, C. R., and BAPTISTA, C. R. Medicalização dos Modos de Ser e de Aprender. Educ. Real. [online]. 2015, vol.40, n.4, pp. 1079-1102. [viewed 11th December 2015]. ISSN 2175-6236. DOI: 10.1590/2175-623642057. Available from: http://ref.scielo.org/bfkq4n

GAUDENZI, P. and ORTEGA, F. O estatuto da medicalização e as interpretações de Ivan Illich e Michel Foucault como ferramentas conceituais para o estudo da desmedicalização. Interface (Botucatu) [online]. 2012, vol.16, n.40, pp. 21-34. [viewed 14th December 2015]. ISSN 1414-3283. DOI: 10.1590/S1414-32832012005000020. Available from: http://ref.scielo.org/sv5jg9

Referência:

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: M. Fontes, 2010.

Link externo:

Revista Educação & Realidade –EDREAL – http://www.scielo.br/edreal

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

CHRISTOFARI, A. C. A medicalização na escola [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2015 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2015/12/17/a-medicalizacao-na-escola/

 

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