Roberto Marinucci, editor-chefe da Revista REMHU, Brasília, DF, Brasil
Na atualidade, as políticas e as legislações adotadas em âmbito migratório por numerosos países tendem a criminalizar migrantes e solicitantes de refúgio. Mediante dispositivos de (des)informação, controle, detenção e deportação busca-se dificultar a imigração administrativamente irregular e, sobretudo, vulnerabilizar os migrantes enquanto seres “deportáveis” (Nicholas De Genova), cidadãos de segunda categoria ou, nas palavras de Alessandro Del Lago, “não-pessoas”.
Esse processo de criminalização não é óbvio. Como justificar a demonização de pessoas que fogem de guerras, violações de direitos humanos, desastres ambientais ou condições indignas de vida? Não é parte da identidade axiológica da modernidade ocidental a autonomia do ser humano enquanto sujeito e construtor de sua história? Entre o século XIX e o XX quantos europeus (migrantes econômicos) saíram de seus países em busca de melhores condições de vida? Quantos foram obrigados a fugir em decorrência dos dois grandes conflitos bélicos do século XX? E quantos países moldaram a própria identidade cultural mediante a contribuição de imigrantes? Como é possível, então, transformar o ato migratório num crime?
Segundo o professor Didier Bigo, autor do primeiro artigo “Vigilancia electrónica a gran escala y listas de alerta: ¿Productos de una política paranoica?”, o atual processo de criminalização é produto de “políticas paranoicas” alimentadas pelo medo: mediante a “construção de um espetáculo político” sobre temas como terrorismo, invasão de migrantes, choques de civilizações ou algo similar justificando a adoção de medidas que violam abertamente direitos humanos, permitindo, desta forma, a expansão dos poderes do Estado.
A criminalização das migrações, em outros termos, é uma construção social alicerçada na criação de um inimigo aterrorizante – um bode expiatório – que legitima a interrupção permanentemente temporária do Estado de direito. A “crise” crônica – da economia, da segurança, da identidade nacional – é um chamado constante a obediência e a renúncia as próprias liberdades. O assim chamado “security State”, como sustenta Giorgio Agamben (2015), não afeta apenas os direitos das pessoas em mobilidade, mas também aqueles das pessoas autóctones. O que está em jogo não é apenas a vida e a dignidade dos migrantes, mas também o correto funcionamento do Estado de direito.
É essa também a opinião de Salvatore Palidda no artigo “25 anni di criminalizzazione razzista in Europa”, que estudando o caso da Europa e, de forma específica, da Itália, desmascara os estereótipos sobre a criminalidade e a delinquência dos imigrantes, evidenciando como há uma clara estratégia de inferiorizar social, econômica e juridicamente os recém-chegados para encobrir as consequências nefastas do neoliberalismo e, ao mesmo tempo, legitimar as assimetrias de poder. Conforme o autor, na atualidade, até países como Marrocos e Brasil estão incorporando esse modelo: a mundialização do neoliberalismo desdobra-se na mundialização do racismo e das novas formas de escravidão.
Por vezes, até a lógica dos direitos humanos é utilizada para legitimar a violação de direitos humanos. Essa é a opinião de Guilherme Mansur em “Notas sobre as negociações da “convenção do crime” e dos protocolos adicionais sobre tráfico de pessoas e contrabando de migrantes” que ao estudar os processos de negociação dos Protocolos de Palermo evidencia a espúria aproximação entre migração e justiça criminal, o que acaba, de forma direta ou indireta, criminalizando o ato migratório enquanto intrinsecamente relacionado com a questão do tráfico de pessoas.
Um destaque específico deve ser atribuído também aos dispositivos jurídicos e legislativos de controle, detenção e deportação. Como demonstram os artigos de Márcia Anita Sprandel, Eduardo Domenech, Natália Debandi e Lila García, não raramente os sistemas legislativos são aplicados, por vezes de forma arbitrária, a fim de atingir determinados grupos de pessoas consideradas indesejáveis ou prejudiciais para os interesses do país ou de alguns segmentos sociais. Produz-se a “ilegalidade migratória” a fim de gerenciar a imigração, deportando um grupo de migrantes e incorporando de forma subordinada aqueles que permanece no país. Desta forma, os migrantes criminalizados se tornam “migrantes perfeitos”, enquanto mão de obra dócil, explorável, invisível e sem reais possibilidades reivindicativas. O espectro da deportação se torna uma verdadeira espada de Dámocles que paira na cabeça de quem ousou ludibriar seu destino e buscar uma vida mais digna.
O que fazer diante disso? O espraiado processo de criminalização das migrações revela uma profunda crise da identidade axiológica da modernidade ocidental enquanto fundamentada na lógica dos direitos humanos: estes estão sendo gradativamente substituídos pelos direitos dos cidadãos – a saber, dos autóctones, possivelmente daqueles de 4ª ou 5ª geração ou daqueles que pagam impostos e, portanto, adquirem o direito a ter direitos. Hoje existe, sim, um choque de civilizações: entre a civilização que coloca o ser humano em primeiro lugar e a civilização que o subordina à lógica do mercado ou de outras ideologias. Mas como nos lembra Marc Augé (2016), “Negar a humanidade de alguém significa matá-la em todos”.
Referências:
AUGÉ, Marc. Non c’è progresso se i poveri hanno fame. Avvenire, 09.01.2016.
AGAMBEN, Giorgio. “Perché lo stato di emergenza non può essere permanente”. Repubblica, 24.11.2015.
Para ler os artigos, acesse:
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Links externos:
Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana – REMHU – http://www.scielo.br/remhu
REMHU – www.csem.org.br/remhu
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