Soraia Sales Dornelles, Professora adjunta do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), São Luís, MA, Brasil.
Seria possível compreender a ocupação amazônica hoje, em termos de ampliação de áreas de cultivo e criação ou mesmo da construção de empreendimentos como estradas e hidrelétricas, sem levar em conta os conflitos gerados a partir disso com os povos indígenas que vivem nesses espaços? Durante o século XIX, a província de São Paulo experimentou situações semelhantes. A questão indígena suscitava debates políticos e na imprensa mobilizava a opinião pública. No tempo do Império, grande parte do território paulista era ocupado por vasta cobertura de Mata Atlântica e Campos nos quais indígenas Kaingang, Guarani e Xavante mantinham suas relações tradicionais com o espaço. Essas grandes áreas paulistas apareciam em mapas do período como “terrenos desconhecidos”, “terrenos despovoados” ou ainda, “terrenos habitados por índios ferozes”. Com a mudança na forma de acesso à terra no Brasil posta pela Lei de Terras (1850) a compra passava a ser a única forma de adquirir as terras consideradas devolutas (terras nacionais fora da alçada particular). Contudo, o que aconteceu foi o crescimento de atos de ocupação através da posse que era atividade ilegal. Muitas autoridades que ocupavam cargos públicos (juízes, delegados, deputados, senadores) foram “coniventes com as fraudes e beneficiários do crime”. A relação entre o processo de apropriação territorial no Brasil sempre envolveu conflitos com povos indígenas. Mas essa relação não se trata de um detalhe, ela foi e é central. O discurso do sucesso da indústria agrária nacional se opõe ao do desperdício das terras e da força de trabalho indígenas. A “limpeza” de áreas da presença indígena constituiu um papel fundamental no processo de valorização das terras, “vinculado, simultaneamente, ao processo de formação de colônias com imigrantes estrangeiros”.
No artigo “Expansão da fronteira agrícola do centro-sudoeste paulista na segunda metade do século XIX: presença e atuação indígena em terras almejadas pela apropriação privada, “um empecilho de dura transposição”, publicado no periódico História (São Paulo, vol. 39), é analisado os conflitos territoriais entre os colonizadores do interior paulista e as populações indígenas a partir de pesquisa em grande quantidade de documentos produzidos pela diretoria de índios, polícia, presidência da província e imprensa da época. Por meio desta documentação foi possível alcançar em detalhes as formas do confronto entre os novos colonizadores e os indígenas. Nos discursos destacados na pesquisa, observa-se que a presença de povoados indígenas nas terras almejadas pela apropriação privada era vista como entrave, uma “punista e prejudicial presença” nas palavras da época. Frente a isso, utilizaram-se tanto os caminhos legais quanto os ilegais para retirar os índios de suas terras. No primeiro caso, havia a política de aldeamentos imposta pelo Regulamento das Missões (1845), que previa o confinamento dos índios considerados “selvagens”, aqueles que estavam nos matos, florestas e áreas ainda não incorporadas pela “civilização”, em áreas restritas designadas pelas autoridades de cada província ou localidade. A outra opção era a perseguição e extermínio, uma verdadeira guerra como muitos interlocutores do período deixam ver. Nada disso é novidade. O que esta pesquisa contribui, no entanto, é na ampliação da compreensão sobre os detalhes desses processos para o caso de São Paulo, corroborando para o fortalecimento da aplicação do conceito de genocídio, tal qual apresentado recentemente pela historiadora Vânia Maria Losada Moreira (2020, p. 395-398), definido como destruição sistemática, física e cultural, como forma base das relações interétnicas entre indígenas e não indígenas.
E os índios, o que fizeram? Suas ações foram variadas e guiadas por razões próprias e condicionadas pelas possibilidades pouco vantajosas que lhe foram impostas. Uma parte significativa recorreu à política de aldeamentos como forma de garantir alguma autonomia, mesmo que em territórios restritos e onde se lhes impunha uma gama de restrições aos seus modos de viver. O objetivo do sistema de aldeamentos era que eles deixassem de ser índios, sendo incorporados à “massa nacional”, de preferência, como trabalhadores rurais. Apesar de todos os esforços, as identidades indígenas permaneceram sendo acionadas, ressignificadas e reconstruídas no século XIX e nos períodos seguintes (ALMEIDA, 2010; MONTEIRO, 2001, PACHECO, 1999). As experiências dos aldeamentos permitiram que alcancemos como os indígenas compreendiam as políticas imperiais a as ações ilegais dos posseiros. Eles acionaram constantemente a justiça e as autoridades em defesa de seus direitos. Outras vezes, os indígenas recorreram ao uso da violência como forma de se contrapor aos projetos do Estado. Por meio da organização de ataques às fazendas e roças, do furto de animais e objetos e também da morte de pessoas e animais, buscaram garantir ou retardar a perda de territórios e autonomia.
Pesquisas desta natureza são fundamentais para reconstruir nossa perspectiva sobre o passado indígena no Brasil, que por muito tempo foi tomado como de pouca importância. No tempo presente, em que o tema do genocídio dos povos indígenas brasileiros se tornou cotidiano e internacional, é preciso olhar criticamente para experiências pretéritas.
A seguir, ouça o podcast de Soraia Sales Dornelles ampliando a discussão de seu artigo.
Referências
ALMEIDA, M. R. C. de. Os índios na História do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2010.
DORNELLES, S. S. A questão indígena e o Império: índios, terra, trabalho e violência na província paulista, 1845-1891. 266 f. 2017. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, 2017. Available from: http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/321829
MONTEIRO, J. M. Tupis, tapuias e historiadores: estudos de História indígena e do indigenismo. 235 f. 2001. Tese (Livre Docência) – IFCH Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, 2001. Available from: http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/281350
MOREIRA, V. M. L. Kruk, Kuruk, Kuruka: genocídio e tráfico de crianças no Brasil imperial. História Unisinos, [online], 2002, vol. 24, no. 3, pp. 390-404. ISSN: 2236-1782 [viewed 14 October 2020]. https://doi.org/10.4013/hist.2020.243.05. Available from: http://revistas.unisinos.br/index.php/historia/article/view/hist.2020.243.05/60747973
OLIVEIRA, J. P. de (org.). A viagem de volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. Rio de Janeiro: Contracapa, 1999.
Para ler o artigo, acesse
DORNELLES, S. S. Expansão da fronteira agrícola do centro-sudoeste paulista na segunda metade do século XIX: presença e atuação indígena em terras almejadas pela apropriação privada, “um empecilho de dura transposição”. História [online]. 2020, vol. 39, e2020026. ISSN: 1980-4369 [viewed 13 October 2020]. https://doi.org/10.1590/1980-4369e2020026. Available from: http://ref.scielo.org/2nrn49
Links externos
Exposição Virtual do Arquivo Público do Estado de São Paulo, Oeste Paulista: http://200.144.6.120/exposicao_oeste/
Grupo de Trabalho (GT) da Associação Nacional de História (ANPUH), Os Índios na História – https://gtindigenasnahistoria.com/
História (São Paulo) – HIS: www.scielo.br/his
Soraia Sales Dornelles: https://sigaa.ufma.br/sigaa/public/docente/portal.jsf?siape=2365309
Os Índios na História do Brasil (site Prof John Manuel Monteiro): https://plutao.ifch.unicamp.br/ihb/index.htm
Sobre o autor
Soraia Sales Dornelles é professora-adjunta da Universidade Federal do Maranhão, Doutora em História Unicamp (2017); área de atuação História; pesquisa na área de História Indígena e do Indigenismo, História da América Portuguesa e Brasil Imperial, História social do trabalho e História agrária, Ensino de História Indígena. E-mail: soraiasdornelles@gmail.com (http://lattes.cnpq.br/8639481537384795)
Como citar este post [ISO 690/2010]:
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