Irene Borges-Duarte, Pesquisadora no Phenomenology and Culture Group — Praxis: Centre of Philosophy, Politics and Culture. Professora Associada do Departamento de Filosofia da Universidade de Évora, Évora, Portugal
Os ritmos da vida em sociedade seguem a cadência imposta pelo imperativo de produção, ele próprio uma materialização do paradigma do pensamento técnico, pelo qual o mundo, mas sobretudo o ser humano, acabam por ser configurados como objectos ou recursos. A pandemia, resultado directo dessa configuração técnica da existência, acabou por impôr uma pausa sobre esta cadência, uma paragem que nos relembrou da importância da afectividade nas relações que estabelecemos entre nós, mas também com a natureza. Com esta paragem, evidenciou-se, então e sobretudo, a sua necessidade: a urgência global de pensar sobre as consequências que a determinação tecnológica do universo tem vindo a impor sobre o mundo, e sobre o ser humano que nele se encontra lançado. Atenta ao modo como a questão se impôs, Irene Borges-Duarte, no artigo initulado “O pensar como resposta ao desafio tecnológico? A escola heideggeriana”, publicado na revista Trans/Form/Ação, vol. 44, número especial “Dossier Filosofia e Fenomenologia da Técnica”, procura destacar, com o seu texto, a necessidade de desenvolver, e aprofundar, uma abordagem filosófica aos problemas que se levantam com a determinação técnica da cultura, da natureza, e do próprio ser humano enquanto aí-ser (Dasein). Definir o significado, mas sobretudo o porquê, da urgência do pensar como resposta ao desafio tecnológico, constitui, por isso, o mote do seu texto.
Debruçando a sua atenção sobre a herança heideggeriana, a Autora começa por delimitar com a ela a questão do pensar como um modo de fazer humano, que pressupõe um distanciar-se do mundo, sempre de forma a poder compreendê-lo em toda a sua profundidade. É este distanciamento que abre ao ser humano o espaço de que necessita para desencobrir a verdade que se oculta nos entes que compõem o mundo como tal. Contudo, esta delimitação do pensar como um exercício interpretativo — que procura aquilo que se oculta no imediato, no superficial —, distingue-se do tipo de compreensão que a técnica e a ciência fazem dos entes, ao delimitá-los como recursos, como objectos. Em Heidegger, ao pensar, enquanto modo humano de fazer, junta-se-lhe ainda uma dimensão afectiva. Mais que um mero trazer à presença as essências dos entes que, no mundo, se dão a mostrar ao Dasein capaz de as interpretar, o pensar é compreendido por Irene Borges-Duarte, à luz de Heidegger, como um acolher, como uma apropriação autêntica que o Dasein faz dos entes que, na sua relação com o mundo, acabam por tocá-lo na sua afectividade. O pensar tem, por isso, uma relação próxima com a linguagem, nomeadamente com a poética, pois que a sua tarefa histórica e fundamental consiste em traduzir a forma como o mundo se dá na experiência vivida, na forma como a sua profundidade aí se manifesta e se apreende. Pensar é, por isso, um “passo atrás”, um distanciar-se do que afectivamente se dá ao ser humano, e que, segundo Irene Borges-Duarte (2021, p.24), permite “(…) enfrentar-se ao desafio do projecto cibernético ou tecnológico do mundo, (…) e alertar para o que nele acontece, tanto de positivo como de perigoso”.
A autora compreende que esta interpretação do pensar, como um vínculo que se estabelece entre a afectividade e o distanciamento, também se encontra presente no trabalho de Hannah Arendt. Também em Arendt o pensar surge conceptualizado como um distanciamento, crítico, que o ser humano tem necessariamente de estabelecer face ao mundo pelo o qual é absorvido. Apenas pelo exercício do pensar poderá o ser humano romper com os hábitos que se impõem sobre si. Só através do pensar se torna possível questionar o que se dá na experiência que fazemos do real, e colocar em questão o que deve aí ser, efectivamente, questionado. Pensar, diz-nos Irene Borges-Duarte, agora à luz de Arendt, é por isso uma tomada de consciência, uma compreensão do estar a ser da nossa interioridade no mundo que partilhamos com os outros. Uma tomada de consciência que apenas se torna possível como um distanciar-se, como uma paragem intencional do fluxo ininterrupto do tempo, um posicionar-se na atemporalidade, é o criar de um instante sobre o qual se suspende o continuum da vida terrena, e que nos mostra, aí, a ser.
A concepção do pensar como suspensão encontra em Agamben um outro aprofundamento que, não obstante, segue ainda linha que Irene Borges-Duarte acaba por traçar a partir de Heidegger e Arendt. Atentando sobre o texto A Ideia da Prosa, a Autora destaca como em Agamben, o pensamento e a linguagem se encontram numa relação íntima. Tal como o uso das aspas num texto procura destacar algo que é dito do fluxo contínuo do discurso, também o pensar se perspectiva como um criar distância, como o destacar algo que se dá no mundo, o suspender de algo que se apresenta no fluxo contínuo da temporalidade. Com esta suspensão, abre-se um outro caminho para perceber aquilo que se dá ao pensar, e que Irene Borges-Duarte, à luz de Agamben, compreende como a aventura, que propicia uma nova forma, autêntica, do humano se apropriar o ente. Pensar é, por isso, interpretar no mundo o que potencialmente pode ser, o que pode vir-a-ser. Na proximidade que Agamben estabelece com a filosofia Aristotélica, pensar compreende-se assim, e segundo a Autora, como um “colocar em potencia”, como uma tomada de consciência daquilo que carece no mundo, e que por essa via promove a “(…) acção que possibilita receber o que não se tem (BORGES-DUARTE, 2021, p. 33). O pensar dá-se, portanto, na ambivalência de dar conta da carência e da possibilidade de profusão, naquilo que, segundo Irene Borges-Duarte (2021, p. 34), “(…) nasce da suspensão do corrente e ordinário e que se mantém sempre em potência, no acto de se lançar incansavelmente na pura aventura.”
O pensar, assim perspectivado como um necessário “passo atrás” que nos permite ir ao encontro do que está a ser no mundo, constitui para Irene Borges-Duarte a mais pertinente aventura. Na leitura que desenvolve no seu texto, pensar é único empreendimento sobre o qual, na Era da Técnica, se poderá perspectivar uma alternativa viável ao destino da total homogeneização do universo. Só pelo pensar é hoje possível habitar o mundo. Pensar representa, por isso, a fuga da redução do humano e da natureza ao carácter informe de objectos, dispostos como stock, cujo valor se define pela sua utilidade, por uma pré-determinação instrumental. Na era onde a máquina impõe a cadência dos ritmos da vida, humana e natural, parar para reflectir, colocar o mundo em suspenso, ganhar distância daquilo que nos confronta, impõe-se como imperativo.
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BORGES-DUARTE, I. Pensar como resposta ao desafio tecnológico? A escola Heideggeriana. Trans/Form/Ação — Revista de Filosofia [online]. 2021, vol. 44, no. Spe.1 [viewed 19 November 2021]. https://doi.org/10.1590/0101-3173.2021.v44dossier.02.p17. Available from: http://ref.scielo.org/sbt6wy
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