Maria Helena Cruz Pistori, Editora associada de Bakhtiniana, Pós-doutoranda na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, SP, Brasil
Santiago Bretanha, da Universidade Federal de Pelotas (RGS), é o autor do artigo Entre a testemunha e a palavra, o dever falar: o testemunho como objeto de uma Antropologia da Enunciação. O texto analisa o livro de Luiz Roberto Salinas Fortes, Retrato Calado, no qual, na superfície, o autor descreve as torturas sofridas em diferentes instituições durante a Ditadura Civil Militar de 1964. A originalidade da reflexão constitui uma importante contribuição para o campo de conhecimento, interligando linguística, filosofia e literatura de testemunho.
Bretanha nos apresenta uma análise baseada em fundamentação teórica (inovadora), pautada em Valdir Nascimento Flores, e designada Antropologia da Enunciação. Ela estabelece uma interligação com os estudos do filósofo Giorgio Agamben e o linguista Émile Benveniste, lançando novas luzes sobre a enunciação e a subjetividade na língua. Em termos da linguística, ela é tratada como “conhecimento antropológico, que não olha para a ‘patologia’, mas para os termos da presença do homem na língua” (FLORES, 2019a, p.300).
Como se pode perceber, são diferentes vozes teóricas que nos permitem compreender aspectos essenciais do sujeito que “fala” na e com a sociedade. Nas palavras de Bretanha,
o gesto analítico levado a efeito assume a linguística como um conhecimento sobre o homem em sua propriedade loquens, especificamente no instante em que se singulariza no/pelo discurso (…) Retrato calado, pelo avesso, ao opor os pares mínimos /k/alado e /f/alado, sugere que essa reconstituição da imagem do sujeito não se dá através do que é dito, mas por aquilo que é silenciado (p.9; 10).
Durante a leitura do texto, muitos aspectos suscitam reflexão e questionamentos, tanto em termos das teorias convocadas, como da experiência do vivido. Alguns são propostos por Bretanha: qual seria a construção acabada, o retrato falado ou o retrato calado? São processos abertos ou não? Um é anterior ao outro? Que relações haveria entre o autor do livro, evidentemente traumatizado a ponto de ter sua fala alterada, e a escrita? A relação entre escrita e testemunho, que pareceria simples e evidente, é particular, responde Bretanha, pois “aquele que escreve [Salinas Fortes] o faz questionando-se sobre o papel de sua enunciação, sobre as significações que a língua inscreve sobre si mesma e sobre a violência” (p.12).
A análise amplia o que poderia ser tomado tão-somente como um enunciado biográfico confessional (de dor, violência, denúncia…), permitindo ao leitor refletir acerca dos limites entre o dever de falar/escrever e o testemunho. É uma voz que dialoga com outras, rejeitando o monologismo imposto, contrário a “variedade e riqueza que existe na comunicação humana” (SCHNAIDERMAN, 2013, p.14). E nesse diálogo consigo mesmo, com o outro e com a própria experiência, por meio da linguagem, observamos que, como diria Bakhtin,
o homem participa inteiro e com toda a vida, com os olhos, os lábios, as mãos, a alma, o espírito, todo o corpo, os atos. Aplica-se totalmente na palavra, e essa palavra entra no tecido dialógico da vida humana, no simpósio universal (2006, p.348).
Nesse sentido, este é um artigo que claramente insere a pesquisa das ciências da linguagem na vida, isto é, na comunicação dialógica com a sociedade, pois o falar (e o calar), em qualquer uma de suas modalidades, é plural, e deve ser respeitado. Que a leitura desse e dos demais textos de Bakhtiniana 17.2 possa ser saboreada e servir a novas pesquisas num amplo espírito de afirmação democrática e antiautoritária.
Referências
BAKHTIN, M. Reformulação do livro sobre Dostoiévski. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
BRETANHA, S. Entre a testemunha e a palavra, o dever falar: o testemunho como objeto de uma Antropologia da Enunciação. Bakhtiniana, Rev. Estud. Discurso [online]. 2022, vol. 17, no. 2, pp. 9-28, ISSN 2176-4573 [viewed 5 July 2022]. https://doi.org/10.1590/2176-4573p54220. Available from: https://www.scielo.br/j/bak/a/mP3WRLKND5j3QCBtkv93kbT/?lang=pt
FLORES, V.N. O escafandro e a borboleta: ou o testemunho da fala que falta ao falante. In: FLORES, V.N. Problemas gerais de linguística. Petrópolis: Vozes, 2019.
SCHNAIDERMAN, B. Bakhtin 40 graus (Uma experiência brasileira com a sua obra). In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin, dialogismo e construção de sentido. Campinas: Editora da UNICAMP, 2013.
Para ler o artigo, acesse
BRETANHA, S. Entre a testemunha e a palavra, o dever falar: o testemunho como objeto de uma Antropologia da Enunciação. Bakhtiniana, Rev. Estud. Discurso [online]. 2022, vol. 17, no. 2, pp. 9-28 [viewed 5 July 2022]. https://doi.org/10.1590/2176-4573p54220. Available from: https://www.scielo.br/j/bak/a/mP3WRLKND5j3QCBtkv93kbT/
Links externos
Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso – BAK: https://www.scielo.br/j/bak/
Bakhtiniana, vol. 17, no.2: https://www.scielo.br/j/bak/i/2022.v17n2/
Maria Helena Cruz Pistori: https://orcid.org/0000-0003-0751-3178
Como citar este post [ISO 690/2010]:
Últimos comentários