Maria Helena Cruz Pistori, Editora associada de Bakhtiniana, Pós-doutoranda na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, SP, Brasil.
Direito contra direitos? Uma polêmica do Largo de São Francisco na Folha de S. Paulo: reflexões crítico-discursivas é o título do artigo de Viviane de Melo Resende (Universidade de Brasília, UnB), publicado no último número de Bakhtiniana (vol. 17, no. 3). É um texto que vale a pena destacar não apenas por sua qualidade acadêmica, mas sobretudo pelas reflexões que suscita num momento em que vivenciamos o constante crescimento da população em situação de rua nas grandes cidades. O modo como compreendemos o problema e o expressamos, sem dúvida, tem impacto na busca de soluções para ele.
O artigo é resultado de um projeto de pesquisa patrocinado pela CAPES e desenvolvido na Universidade Pompeu Fabra, na Espanha, intitulado “Representação de políticas públicas para população em situação de rua como gestão do território: metáforas espaciais na Folha de S. Paulo” – o veículo, entre os estudados, que mais publica notícias relacionadas a questões territoriais.
A partir de uma abordagem discursiva crítica e perspectiva decolonial, a autora analisa quatro artigos de opinião, todos eles redigidos por ex-alunos da Faculdade de Direito (USP) do Largo de São Francisco, que tratam mais especificamente da população em situação de rua que se aloja em frente da instituição. A polêmica se desenvolveu na coluna “Tendências e Debates” daquele jornal.
Um dos pontos que se destaca no tratamento do tema é sua contextualização teórica inicial – a perspectiva decolonial. Assim, conceitos como colonialidade, modernidade e discurso são apresentados ao leitor, buscando mostrar como a perspectiva da colonial-modernidade pode aprofundar a compreensão sobre a situação de rua de excluídos e os discursos vinculados ao tema. Resende afirma:
Compreender a interdependência entre colonialidade e modernidade favorece não só um melhor entendimento do passado, mas também do presente, pois permite enxergar como o passado colonial chega aos nossos dias. Silvia Federici (2017) chama atenção para a contemporaneidade entre a caça às bruxas na Europa, a privatização das terras produtivas e a promulgação das Leis Sangrentas contra pessoas em situação de rua ou de mendicância na Inglaterra, a colonização de territórios e o extermínio de populações nas Américas, o início do tráfico de pessoas no Atlântico Sul (2022, p.37).
São dados, entre outros, que podem levar o leitor a compreender com mais profundidade tanto a própria situação social que gera o problema como os discursos selecionados, representativos de vozes que circulam cotidianamente entre nós. Muitas vezes, vozes monológicas (ou autoritárias…) que frequentemente, como constatamos no próprio texto, tornam invisível o outro, negando-lhe a existência, ou representando-o desumanizadamente. Como diz Bakhtin, “no enfoque monológico (em forma extrema ou pura), o outro permanece inteiramente apenas objeto da consciência e não outra consciência” (2006, p.348).
Figura 1. Na Praça Alexandre de Gusmão – São Paulo/SP.
Tal objetificação do outro está expressa no irônico título do primeiro dos textos analisados, “Os donos do largo de São Francisco”, que se constrói sobretudo com base na metáfora da situação de rua como apropriação privada do espaço público. Em confronto com ele, o último texto analisado, que sustenta não se poder propor nenhum projeto para a questão da situação de rua “sem ouvir as milhares de pessoas que a vivenciam” – o outro.
Não é o enfoque teórico bakhtiniano, entretanto, que fundamenta a análise das metáforas espaciais presentes nos quatro artigos de opinião, mas textos de teóricos da Análise do Discurso, principalmente da Análise Crítica do Discurso. Resende seleciona duas categorias de análise: a metáfora e a representação de atores sociais.
As metáforas sobre a situação de rua e as políticas públicas são mapeadas manualmente nos quatro textos; ao agrupá-las, a autora nos mostra como indicam crenças, valores e atitudes compartilhadas socioculturalmente, estados afetivos, pessoais e mesmo corpóreos. A população em situação de rua, representada como os atores sociais, aparece nos textos a partir de pressuposições de julgamentos acerca do que são ou do que fazem.
Os dados coletados nos artigos são postos a dialogar ao longo do texto e nas considerações finais, que envolvem ainda uma crítica ao foco no território ao se tratar de tais excluídos, “quando se está diante do sofrimento, da negação, da rotineira violência e da violação de direitos” (Resende, 2022, p.54). Essa atitude frente à desumanização do outro novamente nos lembra palavras de Bakhtin, num texto em que trata do “ato ético responsável”: “… ser realmente na vida significa agir, é ser não indiferente ao todo na sua singularidade” (2010, p.99).
Referências
BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello & Carlos Alberto Faraco. São Carlos, SP: Pedro & João Editores, 2010.
BAKHTIN, M. Reformulação do livro sobre Dostoiévski. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo de Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa de Tzvetan Toorov. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
FEDERICI, S. Calibã e a bruxa. Mulheres, corpos e acumulação primitiva. Tradução Coletivo Sycorex. São Paulo: Elefante, 2017.
Para ler o artigo, acesse
RESENDE, V.M. Direito contra direitos? Uma polêmica do Largo de São Francisco na Folha de S. Paulo: reflexões crítico-discursivas. Bakhtiniana, Rev. Estud. Discurso [online]. 2022, vol. 17, no. 3, pp. 35-59. [viewed 29 August 2022]. https://doi.org/10.1590/2176-4573p56079. Available from: https://www.scielo.br/j/bak/a/yXfXj6L6LX4bn8LnLV7m48N/
Links externos
Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso – BAK: https://www.scielo.br/j/bak/
Bakhtiniana, vol. 17, no.3: https://www.scielo.br/j/bak/i/2022.v17n3/
Maria Helena Cruz Pistori – Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0751-3178
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