André Brayner de Farias, oceanólogo e doutor em filosofia, professor do Programa de Pós-graduação em filosofia da Universidade de Caxias do Sul, RS, Brasil.
O ensaio O infinito e o aberto – sobre as intuições éticas de Levinas e Bergson tem um objetivo muito direto: aproximar esses dois campos de compreensão da ética, a filosofia levinasiana e o bergsonismo, que certamente estão entre os mais desafiadores dentro dos quadros do pensamento contemporâneo, se concordamos que todo pensamento ético deve levar a fazer mais que pensar.
E o desafio está expresso nos conceitos centrais da discussão específica de ambos os autores e onde gravita o nosso debate: infinitude e abertura. O que o estudo sugere, e ele está baseado em muitas evidências presentes tanto ao longo da obra de Levinas quanto em alguns intérpretes desses autores, como é o caso de Pierre Trotignon, de Jean-Louis Vieillard Baron e de Frédéric Worms, é que podemos ler Levinas segundo a chave do dualismo bergsoniano entre o fechado e o aberto. Totalidade e infinito, que é o título da primeira grande obra de Levinas, de 1961, é uma forma de traduzir As duas fontes da moral e da religião, que é o título da obra ética do bergsonismo, o último grande livro de Henri Bergson, de 1932.
A proposta desse ensaio é inovadora, pois tradicionalmente os estudos levinasianos privilegiam a herança fenomenológica do filósofo franco-lituano. Apesar das inúmeras referências a Bergson que encontramos ao longo dos escritos de Levinas, isto nunca mobilizou os leitores de Levinas para interpretá-lo além do horizonte fenomenológico, de fato há poucas exceções a essa regra. Mas aqui não se trata de disputar o campo hermenêutico levinasiano, e sim de mostrar as possibilidades de um Levinas bergsoniano.
É o próprio Levinas quem autoriza a leitura, uma vez que ele reivindica fidelidade às teses de Bergson, sobretudo ao conceito de duração, que é uma noção não astronômica do tempo. O ensaio também permite que se redescubra a obra menos lida de Bergson e se perceba a atualidade de sua proposta ética, sobretudo em referência à radicalidade que implica na atitude aberta e sem obstáculos de que é testemunho a experiência mística.
O que caracteriza a ética da abertura de Bergson é seu caráter pessoal. Enquanto a moral fechada (obrigação) é impessoal e análoga ao psiquismo do instinto nos insetos societários (abelhas, formigas, cupins), a moral aberta é sempre a experiência de alguém que em seu testemunho não pauta suas ações em regras preestabelecidas ou em condicionantes sociais (a família, a pátria), mas numa forma extraordinária e superabundante de afeição, que se assemelha ao amor divino. Levinas, por outro caminho, produzirá a mesma compreensão acerca da ética. Sempre lembrando o Dostoiévski de Os irmãos Karamázov (“neste mundo somos todos responsáveis de tudo e de todos, e eu mais que todos os outros”), Levinas afirma a assimetria fundamental do ato ético, que é uma forma de dizer o caráter pessoal e insubstituível da ética.
A responsabilidade sem obstáculos da alma aberta e superabundante de Bergson é a própria responsabilidade infinita da qual Levinas fala o tempo todo em sua obra. Mas se Levinas elogia na filosofia de Bergson a possibilidade de se liberar do tempo astronômico, não poderíamos pensar o desafio da responsabilidade infinita de Levinas como o próprio desafio ético e político de produzir a justiça como tempo, ou seja, de dizê-la fora ou apesar do enquadramento geométrico das leis? A incondicionalidade da ética não seria uma espécie de duração, que poderíamos traduzir como um certo tempo da urgência, do desespero, do excesso e da exceção, enfim, da superabundância, que é aquilo mesmo que dá vida ao ato ético, aquilo de que vive a verdadeira ética?
Sobre André Brayner de Farias
Oceanólogo e doutor em filosofia, é professor do Programa de Pós-graduação em filosofia da Universidade de Caxias do Sul/RS, Brasil. As filosofias de Levinas e Bergson estão entre seus temas preferenciais de pesquisa. André Brayner de Farias preside atualmente o Centro brasileiro de estudos levinasianos (Cebel).
Referências
BERGSON, H. A evolução criadora. Lisboa: Edições 70, 2001.
BERGSON, H. As duas fontes da moral e da religião. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
DELEUZE, G. Bergsonismo. São Paulo: Editora 34, 2012.
DERRIDA, J. Adeus a Emmanuel Lévinas. São Paulo: Perspectiva, 2004.
LEVINAS, E. Ética e infinito. Lisboa: Edições 70, 1988.
LEVINAS, E. Quatro leituras talmúdicas. São Paulo: Perspectiva, 2003.
LEVINAS, E. Totalidade e infinito. Lisboa: Edições 70, 2008.
Para ler o artigo, acesse
FARIAS, A.B. O infinito e o aberto: sobre as intuições éticas de Levinas e Bergson. Trans/Form/Ação [online]. 2023, vol. 46, no. 2, pp. 15-34 [viewed 22 May 2023]. https://doi.org/10.1590/0101-3173.2023.v46n2p15. Available from: https://www.scielo.br/j/trans/a/j5pcCN6SfZM4Nm57KzCtpmk/
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X Encontro do GT Filosofia Francesa Contemporânea – Comunicações (Lévinas, Bergson, Simone de Beauvoir, Sartre, M. Henry, fenomenologia): https://youtu.be/xNTviJv2_Ro
Encontro Jornadas levinasianas – Levinas: por uma filosofia da desobediência (Levinas Brasil – Cebel): https://youtu.be/831Kfrspor4
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