Suely Deslandes, pesquisadora titular do Departamento de Ensino, Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF), Fundação Oswaldo Cruz.
Taiza Ramos de Souza Costa Ferreira, assistente social, pesquisadora de pós-doutorado do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), São Paulo-SP, Brasil.
Bárbara Freitas, psicóloga, doutoranda do Programa em Saúde da Criança e da Mulher, IFF/Fiocruz.
O artigo “A vara da disciplina”: discursos de religiosos em defesa de castigos físicos para a educação de crianças e adolescentes, discute a visão difundida na internet de alguns líderes religiosos conservadores sobre a educação de filhos. Eles criticam o Estado por ter sancionado uma lei contrária ao uso da palmada. Para esses influenciadores, a lei estaria interferindo no direito das famílias educarem seus filhos com base em seus princípios, experiências pessoais e culturais.
A correção de comportamentos considerados impróprios dos filhos através do castigo físico é vista como “um ato de amor”, orientado e traduzido pelo conceito bíblico de “vara”. Nessa perspectiva, quando o Estado proíbe a palmada ou qualquer castigo físico estaria indo contra uma ordenança divina, uma vez que os pais são autoridades constituídas por Deus. Logo, com a “Lei Menino Bernardo”, o Estado estaria a serviço do demônio, em oposição à família e aos valores morais e éticos cristãos.
Todavia, cabe contextualizar que, nas eleições de 2018, uma parcela considerável desse grupo endossou políticas com pautas consideradas conservadoras, que buscam como estratégia cultural, e, porque não dizer, ideológica, a defesa da “família tradicional” e de um acionamento ao “cidadão de bem”, em defesa da “moral e dos bons costumes”.
Nesse estudo, as pesquisadoras examinaram os discursos favoráveis aos castigos físicos e os contextos discursivos de 43 vídeos publicados na plataforma YouTube, entre os anos de 2014 e 2020, que falavam sobre a “Lei da Palmada” ou o uso de castigos físicos na educação dos filhos. As falas extraídas dos vídeos foram transcritas e codificadas em um programa próprio para pesquisa qualitativa (AtlasTi), e, em seguida, foi realizada a análise crítica dos discursos contidos nos arquivos.
O estudo não focou nas denominações cristãs dos interlocutores, considerando o quão amplo e diverso é o universo evangélico. Assim, não foram identificadas as igrejas nem os nomes dos interlocutores. O artigo buscou debater sobre os posicionamentos e as estratégias contidas nos discursos de segmentos que criticam o Estatuto da Criança e do Adolescente, que, com a “Lei Menino Bernardo”, reafirma a defesa do direito de crianças e adolescentes de serem educados sem o uso de castigos físicos e tratamentos considerados cruéis ou humilhantes.
O artigo foi realizado por duas pesquisadoras e uma doutoranda do grupo de pesquisa “Violência nas relações e comunicação digital” do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do Instituto Nacional da Criança do Adolescente e da Mulher Fernandes Figueira (IFF/FIOCRUZ). O estudo apresenta um recorte dos resultados de uma pesquisa chamada “Internet: espaço de disseminação e de enfrentamento de violências contra crianças e adolescentes”, coordenada pela Profª Dra. Suely Deslandes, e que contou com a cooperação de outras universidades.
Dentre os resultados apresentados no artigo, destacamos que os vídeos eram voltados para pessoas do segmento evangélico ou simpatizantes das diferentes denominações, principalmente “mães e pais cristãos”. A “Lei Menino Bernardo” foi considerada pelos mais extremistas como uma estratégia diabólica ou demoníaca de um governo “comunista”, que pretendia destruir a família. O entendimento comum foi de que o Estado não pode dizer o que o cidadão deve ou não fazer, ou pensar, muito menos como deve educar seus próprios filhos. Esses indivíduos entendem que os “assuntos de família” devem ser administrados segundo a consciência de cada um, inclusive a gestão da violência.
Os locutores dos vídeos apresentam recomendações de como os pais devem praticar os castigos físicos, buscando mostrar que há uma racionalidade e controle sobre a ação punitiva. Esse “autocontrole” é entendido como “natural”, sendo aquilo que distinguiria os castigos da violência. Os pais são aconselhados, por exemplo, a não bater em momento de raiva ou na frente de amigos da criança, de modo que tal ato não seja considerado como humilhação ou violência.
Nos vídeos se enfatiza que aqueles pais que não corrigissem seus filhos veriam as consequências desta omissão e seriam cobrados por Deus. Em resumo, os crentes saberiam educar seus filhos, pois seguem as instruções divinas contidas na bíblia. Reforçam uma ideia de perseguição e antagonismo entre as “leis do mundo”, a sociedade e os grupos e leis cristãs.
As autoras concluem que discursos que defendem o uso da palmada na educação de crianças e adolescentes, ao atribuir-lhe conotação positiva como ato de cuidado, acabam por reforçar e naturalizar atos de violência. Portanto, compreender de maneira mais aprofundada a perspectiva de parte do segmento evangélico, que percebe a prática de castigos físicos como o modo correto de educar os filhos, é fundamental. Esse entendimento possibilitaria a implementação de estratégias de prevenção mais eficazes contra violências direcionadas a crianças e adolescentes nesse contexto. Estabelecer parcerias com lideranças evangélicas sensíveis e comprometidas com a defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes, bem como com uma educação sem violência, é uma estratégia importante.
Referências
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Para ler o artigo, acesse
DESLANDES, S., FERREIRA, T.R.S.C. and FREITAS, B. “A vara da disciplina”: discursos de religiosos em defesa de castigos físicos para a educação de crianças e adolescentes. Interface – Comunicação, Saúde, Educação [online]. 2023, vol. 27, e220587 [viewed 19 January 2024]. https://doi.org/10.1590/interface.220587. Available from: https://www.scielo.br/j/icse/a/YNMJhbpQ7ThN6wmLqFWRF8Q/
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